Preparação para receber a Comunhão
Recebem o sagrado Corpo de Nosso Senhor sacramental
e espiritualmente aqueles que recebem devida e dignamente o Santíssimo
Sacramento. Quando digo “dignamente”, não pretendo afirmar que haja um homem
tão bom ou que possa ser tão bom que a sua bondade o torne, com toda a justiça
e razão, digno de receber no seu vil corpo terreno a Carne e Sangue santos,
bem-aventurados e gloriosos, do próprio Deus todo-poderoso, com a sua alma
celestial e a majestade da sua divindade eterna; quero antes dizer que o homem
pode preparar-se, colaborando com a graça de Deus, para chegar a um estado tal
que a incomparável bondade de Deus, na sua liberal abundância, se digne tomá-lo
e aceitá-lo como digno de receber o seu precioso e inestimável Corpo no corpo
de um simples servidor.
Tal é a maravilhosa generosidade de Deus
todo-poderoso, pois Ele não só se digna, mas até se deleita de verdade em estar
com os homens, se estes se preparam para recebê-lo com alma limpa e virtuosa,
pelo que diz: Delitiae meae esse cum
filiis hominum: “As minhas delícias são estar com os filhos dos homens”
(Pr. VIII, 31).
E como podemos duvidar de que Deus se deleita com
os filhos dos homens quando o próprio Filho de Deus e verdadeiro Deus
todo-poderoso quis não só fazer-se filho do homem, isto é, filho de Adão, o
primeiro homem, mas além disso quis sofrer na sua inocente humanidade a
dolorosa Paixão para a redenção e restauração do homem!
Para lembrança e memorial dessa Paixão, não
menosprezou aceitar por dignos aqueles homens que a si mesmos não se fizeram
deliberadamente indignos de receber o próprio santo Corpo nos seus corpos pra
inestimável bem-estar das suas almas.
Mais ainda, na sua soberana paciência, não se
recusa a entrar corporalmente nos corpos vis daqueles cujas mentes sujas
rejeitam recebê-lo graciosamente, e não frutuosa nem espiritualmente, isto é,
recebem o seu santíssimo Corpo nos seus corpos sob o sinal sacramental, mas não
recebem a virtude e o efeito do Sacramento, a graça pela qual se tornariam membros
vivos, incorporados ao sagrado Corpo Místico de Cristo. Em lugar dessa graça
vivificante, recebem o seu juízo e a sua condenação.
Alguns, devido à injuriosa enormidade do propósito
mortalmente pecaminoso com que se atrevem a receber esse Corpo sagrado, merecem
que o diabo (com a permissão de Deus) entre pessoalmente nos seus corações, de
forma que nunca mais têm a graça de expulsá-lo: pois assim como um homem monta
e controla um cavalo com o freio e as esporas, e o faz ir aonde quiser guiá-lo,
assim o diabo governa e conduz o homem com sugestões interiores, refreando-o
diante de toda a ação boa e esporeando-o a praticar o mal, até que finalmente o
leva a todo o tipo de maldade. Assim fez com o falso e traidor Judas, que
recebeu aquele sagrado Corpo em pecado: primeiro, o diabo levou-o a trair o
próprio Corpo santo do seu amabilíssimo Senhor, a quem acabava de receber
sacrilegamente, e, umas poucas horas depois, conduzindo-o à sua própria e
desesperada destruição (cfr. Mt. XXVI, 21-25 e XXVII, 3-5).
Por conseguinte, temos grave motivo para considerar
bem, com grande temor e reverência, o estado da nossa própria alma quando nos
aproximamos da mesa de Deus, e temos de purificar e limpar as nossas almas da
melhor maneira que possamos — com a ajuda da especial graça divina, que antes
teremos invocado com diligência —, mediante a confissão, a contrição e a
penitência, com o propósito firme de rejeitar a partir desse momento os desejos
soberbos do diabo, a cobiça avara da miserável riqueza terrena e as inclinações
impuras da carne suja. E temos de decidir-nos com todas as nossas forças a
perseverar nos caminhos de Deus e na santa pureza de espírito, não aconteça
que, se ousarmos receber irreverentemente esta pérola preciosa (cfr. Mt. VII,
6), esta pérola pura, o Corpo santo do nosso próprio Salvador contido sob o
sinal sacramental do pão, como [se fôssemos] um porco fossando na sujeira e
refocilando-se no barro, e o pisotearmos sob os pés asquerosos das nossas más
inclinações, estimando-as mais do que o seu corpo, e com a intenção de voltar a
chafurdar e a refocilar-nos no charco fétido dos pecados, não aconteça, [digo,]
que a legião dos diabos obtenha permissão de Cristo para entrar em nós, como
obtiveram permissão para entrar nos porcos de Gerasa; e que, assim como os lançaram a correr e
não pararam até afoga-los no mar, assim nos lancem também nós a correr, e não
deixem de afogar-nos no mar profundo da aflição eterna, se Deus, na sua grande
misericórdia, não os refrear e nos der a graça de arrepender-nos.
O bem-aventurado Apóstolo São Paulo adverte-nos
deste horroroso perigo quando diz na sua primeira Epístola aos Coríntios: Quicumque manducaverit panem & biberit
calicem Domini indigne, réus erit corporis &sanguinis Domini: “Quem
quer que coma este pão ou beba o cálice do nosso Senhor indignamente, será réu
do Corpo e do Sangue de nosso Senhor” (1Cor. XI, 27).
Aqui tendes, bons leitores cristãos, uma sentença
terrível e formidável que o próprio Deus pronuncia, pela boca do seu santo
Apóstolo, contra todos os que recebem indignamente este Santíssimo Sacramento:
estes se encontrarão com Pilatos, com os [príncipes dos] judeus e com o falso e
traidor Judas, já que Des julga a recepção e a comunhão indignas do seu Corpo
sagrado uma ofensa nefanda contra a sua Majestade, como considerou nefanda a
ofensa daqueles que injusta e cruelmente o mataram.
Exame de
consciência
Por conseguinte — com o propósito de evitar-nos por
completo este perigo intolerável e de fazer-nos receber o Corpo e o Sangue do
Nosso Senhor de tal forma que Deus, na sua bondade, nos considere dignos, e
assim não venham somente a sua Carne e Sangue sacramental e corporalmente aos
nossos corpos, mas também eficazmente com a graça do Espírito Santo às nossas
almas —, diz São Paulo na passagem antes recordada: Probet sepsum homo, & sic de pane illo edat, & de cálice bibat:
“Examine-se a si mesmo o homem e desta sorte como daquele pão e beba daquele
cálice” [1 Cor. XI, 28].
Mas de que maneira nos examinaremos? Não podemos
acudir atabalhoadamente à mesa de Deus, mas havemos de examinar-nos antes, com
tempo suficiente. Devemos, como dizia, considerar a fundo e examinar com
certeza em que estado se encontra a nossa alma.
Mas não só seria muito difícil, se não talvez
impossível, por mais esforço e diligência que puséssemos, alcançar uma certeza
plena e indubitável [de que não estamos
em pecado mortal] sem especial revelação de Deus. Como diz a Escritura: Nemo vivens scit utrum ódio vel amore dignus
sit: “Ninguém sabe, enquanto está vivo, se é objeto do amor ou do ódio de
Deus” [Ecl. IX, 1]. E noutro lugar: Etiamsi
simplex fuero, hoc ipsum ignorabit anima mea: “Se pensasse que sou
inocente, isto é, sem pecado, é que não me conheceria a mim mesmo” [Jó IX. 21].
No entanto, Deus, na sua imensa bondade,
satisfaz-se quando fazemos com diligência o que podemos para ver se não
albergamos nenhuma intenção de pecado mortal. Pode acontecer que, apesar da
nossa diligência, Deus — cujo olhar penetra muito mais profundamente no mais
íntimo do nosso coração [do que nós mesmos] — enxergue algum pecado que nós não
vemos, pelo que diz São Paulo: Nihil enim
mihi consciussm, sed non in hoc isustificatus sum: “Embora a consciência
não me pese por coisa alguma, nem por isso me tenho por justificado” [1 Cor.
IV, 4]. Mas, na sua grande liberalidade, Deus aceita a diligência que pomos no
exame de tal forma que não nos imputa qualquer outro pecado para nós
desconhecido, antes pelo contrário, purifica e limpa esse pecado com a força e
a virtude do Sacramento.
Fé
Neste exame do nosso eu de que fala São Paulo, um
ponto muito especial deve ser examinar-nos e ver se temos a verdadeira fé e
crença com relação a este Sacramento. Isto é, se de verdade cremos, como é na
realidade, que sob a forma e aparência do pão está o verdadeiro Corpo bendito, a
Carne e o Sangue do nosso santo Salvador, Cristo; o mesmo Corpo que morreu, o
mesmo Sangue que foi derramado sobre a cruz pelos nossos pecados, e que ao
terceiro dia ressuscitou gloriosamente para a vida e, com as almas dos santos
tiradas do inferno, subiu maravilhosamente para o céu, onde está sentado à
direita do Pai e de onde descerá visivelmente na grande glória para julgar os
vivos e os mortos e retribuir a todos os homens segundo as suas obras.
Temos que ver, repito, se cremos firmemente que
este Santo Sacramento não é um signo desnudado, ou uma mera figura, ou um
[simples] penhor daquele Corpo santo de Cristo; mas que é, em memória perpétua
da amarga Paixão que por nós sofreu, o mesmo Sangue precioso de Cristo que
padeceu, agora consagrado e entregue a nós pelo seu poder todo-poderoso e pelo
seu inefável amor.
Este artigo de fé é de tal necessidade e de tal
peso naqueles que têm idade e discernimento para receber este Santo Sacramento
que, sem essa fé, recebem-nos unicamente para a sua própria condenação. E este
ponto, íntegra e firmemente crido, deve ser ocasião para mover todo o home a
recebe-lo muito bem preparado em todos demais aspectos, pois devemos reparar
bem nas palavras de São Paulo: Qui
manducat de hoc pane, & bibit de cálice indigne, iudicium sibi manducat
& bibit, non diiusdicans corpus Domini: “Quem comer deste pão ou beber
deste cálice indignamente, engole e bebe a sua própria condenação, não fazendo
o devido discernimento do corpo do Senhor.” [1 Cor. XI, 27-29].
O Bem-aventurado Apóstolo declara precisamente
nesta passagem que quem de qualquer forma receber indignamente este
excelentíssimo Sacramento, recebe-o para a sua própria condenação, porque pela
sua própria conduta, nessa sua comunhão indigna, declara que não o discerne nem
o julga nem o estima como esse verdadeiro Corpo do nosso Senhor que na
realidade é.
Se esta verdade estivesse profundamente gravada no
nosso peito, estaríamos na verdade muito endurecidos se ela não suscitasse em
todos os nossos corações um fervor de devoção para receber dignamente esse
santo Corpo.
Mas, certamente, não se pode duvidar por outro lado
de que, se algum homem crê que se trata do verdadeiro Corpo de Cristo, e mesmo
assim não se inflama em desejos de o receber com devoção, esse homem
provavelmente receberia o Sacramento muito friamente e longe de toda a devoção
e [mais ainda] quem comungasse crendo que não se trata do seu Corpo, mas apenas
de um penhor seu no lugar do seu Corpo, fá-lo-ia sem devoção alguma.
Humildade e
reverência
Tendo agora firmemente no nosso coração a fé
íntegra sobre este assunto, a saber, que o que recebemos é o verdadeiro Corpo
de Cristo, parece-me que não fará muita falta que recebamos mais ensinamentos
ou alguma outra exortação para nos sentirmos impelidos a incitados a recebe-lo
com humildade e reverência.
Se houvesse um grande príncipe que, por especial
favor, viesse visitar-nos na nossa própria casa, quantas coisas faríamos e que
esforço poríamos para que a nossa casa estivesse arrumada até o último detalhe
e da melhor maneira possível! [Procuraríamos deixar] tudo tão disposto e
ordenado que esse príncipe visse, por meio dessa nossa honrosa recepção, o
nosso amor por ele e a grande estima que lhe temos. Se considerássemos isto e comparássemos o príncipe deste terra com este
Príncipe do céu (há menos proporção entre eles do que a que gá entre um rato e
um homem), imediatamente saberíamos e aprenderíamos com quanta humildade de
mente, com quanta ternura de amor no coração, com que reverência e humildade no
porte, deveríamos procurar receber este glorioso Rei celestial, o Rei dos reis,
Deus todo-poderoso, que tão amorosamente se digna entrar não só em nossa casa
(visita da qual o nobre centurião se sabia indigno), mas até, com o seu Corpo
precioso, na nossa vil e miserável carcaça, e com o seu Santo Espírito na nossa
pobre alma.
Que diligência poderia bastar-nos aqui? Que
solicitude poderia parecer-nos excessiva a fim de preparar a vinda deste Rei
poderoso, que vem por um favor muito especial, não a nossas expensas, nem para
que gastemos do que é nosso, mas para enriquecer-nos com o que é dEle? E vem
apesar de tantos desgostos que rudemente lhe demos em pagamento pelos muitos e
incomparáveis benefícios que nos fez. Como trabalharíamos para que a casa da
nossa alma (na qual Deus viria descansar) não tivesse nem uma aranha venenosa,
nem teias de aranha de pecado mortal penduradas no teto, nem sequer uma palha
ou uma pluma de um mau pensamento: se pudéssemos vê-las no chão, nós as
varreríamos imediatamente.
Mas, como não podemos, bons leitores cristãos,
obter esta fé cristã nem nenhuma outra virtude a não ser pela graça especial de
Deus, de cuja bondade procede todo o bem — como diz São Tiago: Omne datum optimum & omne donum
perfectum, de sursum est descendens a Patre luminum: “Toda dádiva preciosa
e todo o dom perfeito vêm do alto, descem do Pai das luzes” [Tm. I, 17] —,
peçamos a sua graciosa ajuda para alcançarmos esta fé e a sua ajuda para
limparmos a nossa alma em preparação da sua vinda, para que Ele possa fazer-nos
dignos de recebe-lo bem. Da nossa parte, temamos sempre a nossa indignidade e
confiemos audazmente na sua bondade, se não deixarmos de colaborar com Ele.
Porque, se deliberadamente deixarmos de fazer a nossa tarefa, fiados e
consolados na sua bondade, então a nossa esperança não será esperança, mas uma
insensata presunção.
Confiança
Depois, quando nos aproximarmos da sua santa mesa,
na presença do seu santo Corpo, consideremos a sua gloriosa majestade que a sua
bondade esconde de nós, bem como a forma própria da sua Carne santa, encoberta
sob a forma de pão para nos poupar uma confusão tal que talvez não a pudéssemos
suportar, se, sendo o que somos, nós o víssemos e recebêssemos tal como é; e
também para aumentar o mérito da nossa fé na obediente crença no Sacramento,
que se fundamenta na sua palavra, pois os nossos olhos e a nossa razão mostram
o contrário.
Como acontece que essa fé é muito fraca, embora
creiamos, e está muito longe do vigor e da força que Deus quereria, digamos-lhe
com o pai que tinha o filho mudo: Credo,
Domine, adiuva incredulitatem meam: “Creio, Senhor, mas ajuda a minha falta
de fé” [Mc. IX, 23]. E, com os seus bem-aventurados Apóstolos: Domine, adauge nobis fidem, “Senhor,
aumenta-nos a fé” [Lc. XVII, 5]. e com aquele pobre publicano cheio de muita
mansidão de coração, reconhecendo a nossa falta de dignidade: Deus, propitius esto mihi peccatori:
“Meu Deus, tem misericórdia de mim porque sou um pecador” [Lc. XVIII, 13]. E
com o Centurião: Domine, non sum dignus
ut intres sub tectum meum: “Senhor, eu não sou digno de que entres na minha
casa” [Mt. VIII, 8].
Mesmo assim, ao recordarmos a nossa própria
indignidade e, portanto, a grande reverência, temor e assombro que devemos ter
da nossa parte, não esqueçamos o seu amor infinito, que não desdenha vir a nós
e ser por nós recebido apesar de toda essa nossa indignidade.
Ao vermos ou recebermos este excelente memorial da
sua Morte — pois em memória dela se consagra e se nos dá o seu próprio Sangue e
a sua Carne bendita —, devemos recordar e trazer à mente com terna compaixão as
dores agudas da sua dolorosíssima Paixão. E, além disso, alegrar-nos e exultar
na consideração do incomparável amor que Ele nos mostrou e declarou ao sofrer
por nós pra nosso inestimável benefício. Assim, havemos de estar seriamente
temerosos devido à nossa indignidade, mas também muito alegres e cheios de
esperança ao pensar na sua imensa bondade.
Santa Isabel, ao receber a visita e saudação da
nossa bem-aventurada Senhora, tendo por revelação o conhecimento interior e
certo de que a nossa Senhora tinha concebido o nosso Senhor, e embora também
ela estivesse de esperanças, poderia ter pensado conveniente e apropriado, pela
diferença de idade [que havia entre elas], que a sua jovem prima a visitasse;
mas agora, sendo esta a Mão do nosso Senhor, ficou profundamente assombrada com
a sua visita e julgou-se indigna dessa honra; por isso disse-lhe: Unde hoc, ut veniat mater Domini mei ad me?:
“E de onde me vem tanto bem, que a mãe do meu Senhor venha visitar-me?” [Lc. I,
43]. Mas, por maior que fosse o rubor da sua indignidade, concebeu uma alegria
e um alíio tais que a sua santa criança, São João Batista, saltou de alegria no
seu ventre, pelo que ela disse: Facta est
vox salutationis tuae in auribus mei, exaltavit gaudio infans in útero meo:
“Assim que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança no meu
ventre começou a dar saltos de júbilo” [Lc. I, 44].
Assim como Santa Isabel, pelo Espírito de Deus,
teve esses santos afetos, tanto de reverência ao considerar a sua indignidade
diante da visita da Mãe de Deus, quanto de uma grande alegria interior, assim
nesta visitação, em que não é a Mãe de Deus, como aconteceu com Santa Isabel,
mas Alguém incomparavelmente mais excelso do que a Mãe de Deus o era com relação
a Santa Isabel, que se digna vir e visitar a cada um de nós com a sua bendita
presença, pois não vem a nossa casa, mas a nós mesmos, peçamos, digo, ajuda ao
próprio Espírito Santo que a inspirou a ela, e peçamos-lhe nesta excelsa e
santa visita que nos inspire de tal modo que nos envergonhe o susto reverente
da nossa própria indignidade, e que também concebamos uma gozosa consolação e
alívio na consideração da inestimável bondade de Deus.
E que cada
um de nós diga com reverente susto e admiração: Unde hoc, ut veniat mater Domini mei ad me?: “E de onde me vem
tanto bem, que a mãe do meu Senhor venha visitar-me?” E não só a mim, mas ao
meu íntimo. Com o coração cheio de alegria, poderemos verdadeiramente dizer ao
contemplar a sua bendita presença: Exaltavit
gaudio infans in útero meo: “A criança no meu ventre, isto é a alma no meu
corpo (essa alma que deveria ser criança na inocência, como era inocente o
infante São João), salta, meu Senhor, de alegria”.
Ação de
graças. Fé e obras de fé
Depois de recebermos o nosso Senhor e de o termos
no nosso corpo, não o deixemos só, indo-nos para outros assuntos, sem fazer
mais caso dEle (pouco bem nos faria isso). Seja a nossa única ocupação
atendê-lo. Falemos-lhe em devota oração, falemos com Ele em devota meditação.
Digamos com o profeta. Audiam quid
loquator in me Dominus: “Escutarei o que o nosso Senhor há de falar dentro
de mim” [Sl. LXXXV, 8].
Não há dúvida de que, se deixarmos tudo de lado e o
atendermos, não nos deixará de inspirar, falando-nos por dentro como mais
convenha para nosso grande alívio espiritual, para fortalecimento e proveito da
nossa alma. Por conseguinte, aprendamos com Marta que toda a nossa ocupação
exterior deve pertencer a Ele, alegrando-o por amor dEle a Ele e aos seus
companheiros — isto é, as pessoas pobres, cada uma das quais Ele aceita não só
como um discípulo seu, mas como se fosse Ele mesmo. Pois Ele mesmo disse: Quamdiu fecistis uni de hiis fratribus meis
minimis, mihi fecistis: “O que fizestes a algum destes meus irmãos mais
pequeninos, foi a mim que o fizestes” [Mt. XXV, 40]. E também com Maria
sentemo-nos em contemplação piedosa, e atendamos bem ao que o nosso Salvador,
sendo agora nosso hóspede, nos dirá interiormente.
Temos agora um tempo de oração muito especial,
quando Aquele que nos fez e nos resgatou, Aquele a quem ofendemos, Aquele que
nos julgará, Aquele que nos condenará ou salvará, se fez com imenso amor nosso
convidado e está pessoalmente presente dentro de nós, e com nenhum outro
propósito senão que lhe supliquemos o seu perdão e assim possa salvar-nos. Não
percamos, pois, o nosso tempo nem permitamos que esta ocasião passe sem mais
nem menos, pois não sabemos se voltará a repetir-se ou não.
Esforcemo-nos para que fique conosco e digamos com
os discípulos de Emaús: Mane nobiscum,
Domine: “Fica conosco, Senhor” [Lc. XXIV, 29], e estaremos certos de que
Ele não se irá embora a não ser que o deixemos ir. Não façamos como a gente de
Gerasa, que lhe pediu que fosse embora das suas terras, pois haviam perdido uma
vara de porcos por culpa dEle, para salvar um homem do qual havia expulsado uma
legião de demônios que logo a seguir destruíram os porcos. Não façamos algo
parecido, expulsando Deus por um amor desordenado aos lucros temporais ou por
desejos sujos, ao invés de abandonar tudo nEle para proveito das nossas almas;
se isto acontecer, podemos ter a certeza de que Deus não ficará conosco, uma
vez que o teremos expulsado tão rudemente.
E não falamos tampouco o que fizeram as turvas de
Jerusalém, que no Domingo de Ramos receberam Cristo esplendidamente e com
grande fervor em devota procissão; e na Sexta-feira seguinte o entregaram a uma
vergonhosa Paixão. No domingo, gritavam: Bendictus
qui venit in nomine Domine: “Bendito o que vem em nome do Senhor”; e na
sexta clamavam: Non hunc, sed Barabbam:
“Não queremos este, mas Barrabás”. No domingo, gritavam: Osanna inexcelsis; na sexta, Tolle,
tolle, crucifige eum [Hosana nas
alturas e Tira-o, tira-o,
crucifica-o; Mt. XXI, 9 e 23; Lc. XIII, 35; Jo. XIX, 25].
Certamente nunca o recebemos tão bem e tão
devotamente como na Páscoa; se depois caímos num estado miserável, vivendo num
pecado que expulsa o nosso Senhor das nossas almas, provamos que o tínhamos
recebido como os judeus. Pois fazemos tudo o que podemos para tornar a
crucificar Cristo: Iterum, diz São
Paulo, crucifigentes filium Dei [Crucificaram novamente o Filho de Deus (Hb.
VI, 6)].
Bons leitores cristãos, recebamos o nosso Senhor
como o bom publicano Zaqueu, que, desejando ver Cristo e por ser baixo de
estatura, subiu a uma árvore. Nosso Senhor, vendo a sua devoção, chamou-o e
disse-lhe: “Zaqueu, desce porque hoje devo hospedar-me contigo”. E ele desceu
com toda a pressa e recebeu-o com muita alegria na sua casa. Mas não o recebeu
somente com a alegria de uma emoção superficial e passageira, antes
propriamente e com boa intenção. A partir desse momento, reembolsou os que
tinha defraudado e, generosamente, por cada centavo devolveu-lhes quatro. E,
mais ainda, imediatamente, sem demora, ofereceu-se a dar metade dos seus bens
aos pobres. Por isso, não disse: “Ouvirás que vou dar...”, mas disse: Ecce dimidium bonorum meorum do pauperibus:
Olha, Senhor, dou a metade dos meus bens aos pobres” [Lc. XIX, 8].
Com essa jovialidade, com essa presteza de
espírito, com essa alegria e gozo espirituais com que esse homem recebeu o
Senhor na sua casa, dê-nos o nosso Senhor a graça de receber o seu bendito
Corpo e Sangue, a sua santa Alma, junto com a sua Divindade todo-poderosa, nos
nossos corpos e nas nossas almas, para que o fruto das nossas boas obras dê
testemunho dignamente, e com uma fé tão plena e um propósito tão firme de viver
bem, como estamos obrigados a fazer.
Então Deus pronunciará a sua graciosa sentença e
dirá à nossa alma como disse a Zaqueu: Hodie
salus facta est huic domui: “Hoje foi dia de bem-estar e salvação para esta
casa” [Lc. XIX, 9]. Que a santíssima pessoa de Cristo que recebemos realmente
no Santo Sacramento, pelos méritos da sua amarga Paixão (da qual instituiu o
seu Corpo bendito como memorial), se digne conceder-nos a todos nós essa
salvação.
São Thomas More, “A Sós, com Deus – Escritos da
prisão”. São Paulo: Quadrante, 2002, p. 132-146.
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