Ordenação sacerdotal de Dom Tomás de Aquino

domingo, 29 de março de 2015

Comentários Eleison CDII (402) - O Novo Bispo

Por Dom Richard Nelson Williamson
Tradução: Andrea Patrícia (blogue Borboletas ao Luar)
28 de março de 2015




São José, Patrono da Igreja, muito obrigado,
Por ter o número de seus verdadeiros bispos aumentado!




A ordenação do Pe. Jean-Michel a bispo que se deu na semana passada no Mosteiro da Santa Cruz, no Brasil, foi uma ocasião deleitante. O tempo estava quente e seco. O sol brilhava. Os monges e as Irmãs próximos de Dom Tomás de Aquino se destacaram por transformar uma garagem de concreto e metal em um santuário digno da nobre liturgia, que, aliás, eles também prepararam muito bem. Apesar da notícia tardia, um grupo de padres vindo de todos os lugares das Américas se fez presente; e uma congregação de uma centena de almas, também de muitos países diferentes, seguiu atentamente a cerimônia de três horas. 

Desde então têm se regozijado todos os católicos que estavam até então cientes da necessidade de haver ao menos mais um bispo para ajudar a assegurar a sobrevivência de uma “Tradição Resistente”. A preservação da compreensão que tinha Dom Lefebvre sobre a defesa da Fé católica não podia mais depender de um bispo somente. Aquela sua sagração de quatro bispos em 1988 sem a permissão de Roma, pela “Operação Sobrevivência” em oposição à “Operação Suicídio”, tinha de ser estendida no século XXI. Minhas desculpas a todos os católicos que gostariam de ter comparecido se tivessem sido devidamente informados, mas tudo teve de ser feito, e isso incluía uma medida de discrição, para que se tivesse certeza de que a ordenação se realizaria.



Ela tinha adversários poderosos. A Igreja oficial em Roma reagiu declarando que o ordenante foi “automaticamente excomungado”, mas, assim como em 1988, essa declaração é falsa, porque, segundo a Lei da Igreja, quem comete um ato punível não incorre na penalidade normal prevista – por exemplo: excomunhão por sagrar um bispo sem a permissão de Roma – se tiver agido por necessidade. Isso é bom senso, e havia indubitavelmente necessidade no presente caso. Enquanto o mundo se aproxima mais e mais da Terceira Guerra Mundial, que indivíduo na terra pode estar seguro de sua própria sobrevivência?

Paralelamente, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X oficial em Menzingen, na Suíça, condenou a ordenação de Dom Jean-Michel Faure em um comunicado de imprensa emitido no mesmo dia. Digno de nota neste é a admissão de que o ordenante foi excluído da Fraternidade em 2012 por causa de sua “crítica vigorosa” dos contatos da Fraternidade com Roma nos últimos anos. Menzingen alegava até então que o problema era de “desobediência”. Agora, finalmente, admite que estava sendo continuamente acusado de “traição do trabalho de Dom Lefebvre”. Sem dúvida. Traição e destruição.

A própria Roma confirma a traição. No dia seguinte ao da ordenação, Dom Guido Pozzo, Secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, logo após declarar a inexistente “excomunhão”, continuou afirmando que Várias reuniões (entre Roma e a FSSPX) foram realizadas, e mais estão planejadas com certos prelados (romanos), para discutir os problemas que ainda precisam ser esclarecidos em uma relação de confiança; problemas doutrinais e internos à Fraternidade.

Dom Pozzo prosseguiu: O Papa está esperando que a Fraternidade se decida a entrar na Igreja, e nós estamos sempre prontos com um projeto canônico conhecido (uma prelatura pessoal). É necessário um pouco mais de tempo para que as coisas se tornem claras dentro da Fraternidade, e para que Dom Fellay obtenha um amplo e suficiente consenso antes de dar esse passo.

Do que mais alguém precisa para ver o que está escrito no muro?


Kyrie eleison.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas - Parte IV


Professor Carlos Ancêde Nougué

 
Passar-se-á, agora, a responder a cada item da exposição que fizemos da tese de A Figura deste Mundo, de Pacheco Salles. (Essa exposição, numerada, se encontra na Parte II deste artigo, neste mesmo site.) O objetivo de tais respostas particulares é não deixar sem esclarecimento nem sequer o que não é central na tese adversária, e isso porque, conquanto não central, nem por isso deixa de ter importância e conexão no conjunto da tese.


1) Em resposta ao item 1, deve-se dizer que pela graça santificante certamente se dá um novo nascimento, o do novo homem em Cristo (“Não te maravilhes de ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai: assim é todo aquele que é nascido do Espírito”, Jo., III, 7-8; “sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre”, I Ped., I, 23; “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram: eis que tudo se fez novo”, II Coríntios, V, 17); assim como também certamente a fé teologal é infalível em seu ato interno (cf. Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 3). Sucede todavia que como esse ato é, nesta vida, essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe (cf. nossa Refutação, e especialmente Padre Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, p. 290), para que saibamos com toda a certezaem que devemos crer — e pois o que é o erro ou heresia —, as verdades de fé têm de ser propostas por um mestre infalível em seu ato externo: Nosso Senhor Jesus Cristo e o Magistério da Igreja, este como prolongamento d’Aquele e cingido aos princípios de fé dados pela Revelação e pelo Traditum.

2) Em resposta ao 2, deve-se dizer que a afirmação segundo a qual “a fé teologal e a graça santificante são a essência mesma do Cristianismo, e delas depende tudo o mais”, já em si mereceria reparos: porque, com efeito, não é possível a caridade não ser da essência mesma da vida do cristão, se é ela “o vínculo da perfeição” (Col., III, 14); se “ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até o ponto de transportar montes, se não tiver caridade, não sou nada” (I Cor., XIII, 2; grifo nosso); se agora “permanecem [...] a fé, a esperança e a caridade; porém a maior delas é a caridade”, que “nunca há de acabar” (I Cor., XIII, 13 e 8); enquanto passarão, no céu, não só as profecias e a esperança, mas a própria fé. Quanto ao que aqui mais importa, porém, o fato é que o fim da civilização cristã, a partir do século XIII, se deveu não a um crescente culto do dever em geral e a uma crescente obediência cega às autoridades da Igreja, e sim a um crescente culto do dever meramente político e a uma crescentemente exclusiva obediência às autoridades temporais — em detrimento não só do verdadeiro dever de religião para com Cristo, mas do devido assentimento e obediência a seu Vigário. É bem verdade que mesmo a defesa católica, incluída a tomista, contra tal tendência aceitou defender a moral no novo terreno perigosamente subjetivo da consciência: “Embora”, escreve o Padre Calderón em Concilio Vaticano II: la religión del hombre, “sustentassem a legitimidade da sabedoria cristã como regra de conduta, deixaram que se estabelecesse a consciência como regra imediata, o que, conquanto não chegue a ser falso, é desnecessário e inconvenientemente expresso. Pois bem”, prossegue o Padre, “à medida que a crítica que o pensamento moderno e as novas ciências faziam à teologia e à filosofia escolástica foi ganhando terreno, introduzindo o veneno do subjetivismo, o tribunal interior da consciência ia livrando-se da tirania da teologia, abrindo as portas para relativismo moral.” Mas uma coisa é reconhecê-lo, e reconhecê-lo como algo que conduziria ao Concílio Vaticano II, o que é de todo correto; outra, muito diferente, é atribuir à docilidade e obediência ao magistério da Igreja tal efeito, o que, por quanto vimos, é de todo falso.

3) Em resposta ao 3, deve-se dizer que sem dúvida a graça não é um mero auxílio ao bom comportamento e ao combate aos vícios e paixões; mas não deixa de sê-lo também, e em alto grau; e, se nos ordena ela, antes de tudo, a prestar a devida glória a Deus, ordena-nos também a que tenhamos a devida docilidade e obediência ao magistério da Igreja, que, como vimos na “Refutação da primeira ideia básica da tese adversária”, é a regra próxima da fé. A fé, obviamente, não decorre da obediência, dando-se antes o inverso; mas, com respeito ao magistério da Igreja, a implica. Ora, a heresia protestante minou a fé solapando, antes de tudo e precisamente, sua ordenação à docilidade e obediência ao magistério da Igreja, porque, com efeito, a esse solapar leva não só o princípio luterano da sola scriptura, mas também o do livre exame, pelo qual, precisamente, se “atribui o carisma da infalível verdade à fé individual” (P. Calderón, ibid., p. 291). Vê-se, pois, em que ponto e de que modo se tocam a tese sedevacantista aqui tratada e a heresia luterana (mas veremos que, em última instância, todas as versões do sedevacantismo têm este ponto de contato com o protestantismo).

4) Em resposta ao 4, deve-se dizer que, se a razão formal da fé de fato não é propriamente a autoridade do magistério eclesiástico, mas a mesma autoridade divina e sua Revelação (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 1, corpus: “[...] pois a fé de que falamos não dá seu assentimento a algo que não seja revelado por Deus [...]”; Suma contra os Gentios, I, IX, 3 (53): “Ora, não cremos em verdades que excedam a capacidade da razão humana se não tiverem sido reveladas por Deus)”, permanece, todavia, o fato já firmado de que é o magistério da Igreja a regra próxima da fé. Em outras palavras: não podemos crer senão no que a Igreja afiança tratar-se de verdade divinamente revelada (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 10, corpus: “Tem autoridade para fazê-lo [ou seja, para publicar um Símbolo da fé] quem pode determinar em última instância o que é de fé, para que todos possam a ela aderir de maneira inabalável. Isso, todavia, é da alçada do Sumo Pontífice [...].”) Não é pois verdade que o tomar o magistério da Igreja como regra próxima da fé “reduz a fé teologal a mera fé humana”; antes pelo contrário, é o que assegura tratar-se de fé efetivamente sobrenatural e não meramente humana. E, se por um lado é a fé sobrenatural “a única que salva”, por outro lado, repita-se, só o magistério da Igreja nos pode afiançar que se trata de fé teologal, e não de nenhuma contrafação sua.

5) Em resposta ao 5, deve-se dizer que efetivamente, como estabelece Santo Tomás de Aquino, toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. Assim, como diz a tese adversária, qualquer ato da potência intelectiva, potência que tem por objetivo a verdade, será bom se alcançar a verdade; em outras palavras, não tornarão virtuosa a inteligência humana senão os atos seus que alcancem o verdadeiro.

6) Em resposta ao 6, deve-se dizer que de fato nossa inteligência não tem capacidade de conhecer infalivelmente ou com certeza as verdades divinas; com efeito, não as puderam conhecer assim, ou seja, infalivelmente ou com certeza, nem sequer homens como Platão e Aristóteles. Também é verdade, como já dito, que enquanto virtude teologal infusa a fé é infalível em seu ato interno, ou seja, na adesão da inteligência às verdades divinas; mas, como também já visto, não é verdade que seja tal ato ou adesão o que torna discerníveis ou certas aos homens as verdades de fé, porque o que as torna discerníveis ou certas é a regra próxima da fé: o magistério da Igreja. Por outro lado, ao contrário do que faz a tese adversária, deve-se falar de todo diferentemente quando se trata dos anjos ou de comparar o intelecto humano e o angélico; peca a tese adversária por simplificação “angelista”, um pouco à maneira não só de um Jacques Maritain, mas até de um Descartes ou de um Malebranche. Sim, porque (e citemos extensamente, uma vez mais, o Padre Calderón, ibid., pp. 288-289), “naturalmente, [de potentia absoluta] Deus poderia ter proposto [aos homens] as verdades de fé por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como ocorreu de fato com os anjos. No primeiro instante de sua criação, os anjos ainda não tinham a luz da glória, mas a luz da fé pela qual deviam crer em certas verdades reveladas por Deus. Pois bem, nem sequer a natureza angélica pode conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus formou sobrenaturalmente em sua inteligência certas espécies ao modo de revelação interior. Mas para os homens não convinha essa maneira de revelação, porque ela vai contra sua natureza social. É próprio de homem chegar à verdade ensinado pelo magistério oral de suas autoridades naturais. Daí que Deus, que faz tudo com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma autoridade divina”. Assim é que, se de fato, como diz a tese adversária, sem aquela adesão da inteligência às verdades de fé não se ordenaria o homem a seu fim sobrenatural, nem por isso, e muito ao contrário do que diz a referida tese, tal adesão não se dá por uma suposta “ciência infusa” ao modo angélico, nem o cristão é provido da prerrogativa de inerrância no que diz respeito a quanto necessita para a sua salvação senão enquanto adere aos dados da fé mediante a regra próxima desta, que por própria dotação e assistência divina é o mesmo carisma magisterial da Igreja.

7) Em resposta ao 7, deve-se dizer que sem dúvida os fiéis devem lutar por sua fé, razão por que, como diz Santo Tomás, Deus não os deixa cair em erro (“si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium”, De veritate, q. 14, a. 2). Aquela luta convém com o nosso livre-arbítrio, que não é suprimido pela graça (assim, Nossa Senhora não deixa de exercer seu livre-arbítrio ao dizer “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”, ainda que fosse imperiosa e ineludível a graça de que era cheia para poder ser a Mãe de Deus); enquanto este “não deixar cair em erro” convém com a graça divina (imenso mistério: tudo é graça, mas permanece o livre-arbítrio; e, conquanto a predestinação dos eleitos seja anterior à previsão de seus méritos, nem por isso deixa de dizer São Pedro (II, I, 10), para explicar que os méritos são causa não da predestinação, mas sim da salvação efetiva: “Portanto, irmãos, ponde cada vez maior cuidado em tornardes certa a vossa vocação e eleição por meio das boas obras, porque fazendo isto não perecereis jamais”). Mas nada disso implica nenhum “instinto” da fé ou, em outras palavras, nenhum sensus fidei individual certo sem confirmação do magistério da Igreja, “instinto” que como já vimos é de corte luterano; implica, porém, a docilidade ao mesmo magistério da Igreja, o único que, como regra próxima da fé — e ao contrário do que diz a tese adversária —, é capaz de fazer ter certeza com relação aos artigos e sutilezas da fé e, pois, de fazer evitar ou rejeitar os erros com respeito a eles.

8) Em resposta ao 8, deve-se dizer que, obviamente, sem professar a existência de Deus ninguém pode professar nenhuns artigos e sutilezas da fé. E, se o afirmar a existência de Deus pertence antes aos preâmbulos da fé, Deus mesmo no-la revelou porque, no estado de natureza ferida, o obscurecimento ou enceguecimento de nosso intelecto por defeitos físicos ou pelas paixões nos pode levar até ao próprio ateísmo (Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 1, a. 2: “Até com relação ao que a razão humana pode investigar a respeito de Deus era preciso que o homem também fosse instruído por revelação divina. Com efeito, a verdade de Deus, investigada pela razão humana, chegaria apenas a poucos [indivíduos], e depois de longo tempo, e com mescla de muitos erros [...]: no entanto, do conhecimento desta verdade depende a salvação do homem, que se encontra em Deus. Para que a salvação, portanto, chegasse aos homens conveniente e certamente, foi necessário que eles fossem instruídos sobre o divino por revelação divina”). Naturalmente, esse mesmo ato de professar a existência de Deus e seus corolários pode dar-se e se dá no interior de almas individuais; com efeito, dissemos nós na “Refutação da primeira idéia básica da tese adversária”: “Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata.” “Mas o católico”, prosseguíamos, “incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé [ou, de certo modo e em certa medida, até pela razão natural, no tocante ao que de Deus pode ela investigar e concluir] ‘se o confirmar’, como diz o Padre Calderón (em A Candeia Debaixo do Alqueire), ‘e no grau em que o confirmar o magistério da Igreja’.” Ora, por isso mesmo não é exato dizer, como o faz a tese adversária, que “as verdades em que o cristão deve crer são-nos como que reveladas por Deus” individualmente, nem, muito menos, que, se “tais verdades nos são ordinariamente propostas pela pregação dos homens da Igreja, e conquanto comumente tal pregação seja a condição para a crença nelas, dizer condição não quer dizer suficiência — ela não basta para que tenhamos fé, e isso porque com ela não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: não tem ela autoridade para tal, ainda que confirmada por milagres. O ato primordial de fé é posto, é infundido por Deus mesmo, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. Por tudo quanto já vimos, tudo isso não passa, de certo modo, de luteranismo mitigado: porque, ao contrário do que quer fazer crer a tese adversária, o magistério da Igreja, enquanto prolongamento de Cristo mesmo e enquanto regra próxima para a crença dos fiéis, é a própria autoridade vicária em matéria de fé. É verdade que não basta o magistério da Igreja para que tenhamos fé; mas é de todo inverdade que, para este efeito, ele não possa ter senão caráter de persuasão; ao contrário, é ele a única garantia de verdade e certeza com respeito à sobrenaturalidade dos dados da fé e, de certo modo e em certa medida, como vimos, até à própria naturalidade de seus preâmbulos.

9) Em resposta ao 9, deve-se dizer que a solução para o dilema causado pelo Concílio Vaticano II e pelo Magistério que dele emerge não pode dar-se com o abandono da “verdadeira docilidade que o católico deve guardar diante do magistério da Igreja” (Padre Calderón, ibid., p. 75). Não se trata de arrostar um “falso dogma de obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos”, como propõe a tese adversária. Não é em si veraz nenhuma oposição entre “o governo do Deus invisível da pura fé” e “um soberano [o Papa] evidente e acessível aos sentidos” que pudesse mudar-se “de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor”. “A Igreja”, diz ainda o Padre Calderón (idem), “é fundada sobre Pedro, e a solidez desta Pedra reside principalmente na autoridade de seu magistério. Por isso, para romper o dilema atual, não se deve prejulgar a credibilidade do magistério com algum critério diferente do que oferece de si mesma a legítima autoridade, porque então se atentará contra a docilidade católica, que tem como única regra próxima da fé o magistério vivo da Igreja.” Este ponto, porém, se desenvolverá na próxima parte deste artigo, quando se refutar a sedevacantista Tese de Cassiciacum, exposta pela primeira vez, em 1973, por M. Guérard des Lauriers, e segundo a qual os papas conciliares são materialiter (materialmente) papas, mas não o são formaliter (formalmente). Veremos então que esta tese peca desde a base, ou seja, desde a utilização imprópria, incomum e obscura de uma analogia da autoridade, e da autoridade papal em particular, com o sínolo humano de corpo e alma.[1]

10) Em resposta ao 10, deve-se dizer que afirmar, como o faz a tese adversária, que “a luta pela fé foi absorvida e neutralizada numa obediência beata, cega e incondicional ao rei terreno” é, por tudo quanto vimos aqui, pelo menos equívoco. É verdade que tal obediência “implica um axioma imoral: o de que a ordem do superior livra o subordinado de qualquer responsabilidade própria”; mas, no caso, de uma responsabilidade própria diante de Deus e da fé. Ora, o “rei terreno”, que é a maneira imprópria e pejorativa como se refere ao Papa a tese adversária, não é “rei” senão por prolongamento e delegação da própria Realeza de Cristo. Logo, obedecer e ser dócil ao “rei terreno” é, em princípio, cumprir precisamente com a devida responsabilidade diante de Deus e da fé. Para que se incorresse, em tal caso, na referida imoralidade, seria preciso ou que o referido “rei” de algum modo não fosse “rei” (opinião defendida, exatamente, pelos sedevacantistas), ou que, conquanto “rei”, não empenhasse a sua “realeza”, isto é: não comprometesse, como Papa, sua suprema autoridade (tese do Padre Calderón, que decorre, naturalmente, dos princípios por que se fundou e se mantém a Sociedade São Pio X, e à qual, como é óbvio, aderimos plenamente). Ora, ao tratar da virtude da obediência, o Doutor Comum naturalmente a põe abaixo das virtudes teologais (fé, esperança e caridade), porque, ainda se tratando de obediência a Deus, que implica o desapego dos bens criados e o desprezo da vontade própria, a obediência não é senão um meio para aquela adesão. Corretamente, portanto, afirma a tese adversária que “as virtudes teologais sobrepujam todas as virtudes morais, porque concernem diretamente a Deus, enquanto estas concernem apenas ao meio mais adequado para nosso fim último, que é Deus mesmo. E, se é verdade que entre as virtudes morais a obediência ressalta, justamente por implicar o desprezo do maior dos bens (a vontade própria), isso em nada muda o fato de que a obediência é uma virtude subalterna, que depende da mesma subordinação às virtudes mais altas para que ela própria seja virtude. Faltando essa subordinação, deixará a obediência de ser virtude, e se mudará em vício”. Sucede, porém, que a fé a que a obediência deve subordinar-se depende, para sua certeza, da própria autoridade do magistério da Igreja enquanto regra próxima. Logo, a virtude da obediência só se mudará em vício ou se se ordenar a um Magistério que deixe de comprometer sua autoridade enquanto infalivelmente assistida pelo Espírito Santo, ou se se ordenar anterior ou preferentemente a outra autoridade, a saber, a autoridade política, com o que se rompe a devida e essencial subordinação do temporal ao espiritual. E, com efeito, ambas as coisas ocorreram desde o começo da ruína da Cristandade até o Concílio Vaticano II, mas aquela em decorrência desta, o que porém não consegue perceber quem defenda a tese de Pacheco Salles: porque, como vimos suficientemente, para sustentar sua conclusão sedevacantista, ela opera tanto uma reconstrução ideal da história quanto um recorte da doutrina dos doutores da Igreja, especialmente Santo Tomás de Aquino, e do próprio magistério da Igreja. Se assim não fosse, não se vê como se coadunariam a tese adversária de que o magistério da Igreja não pode ter sobre o fiel católico senão caráter de persuasão e a seguinte declaração magisterial (cujo teor também se encontra em numerosíssimos outros documentos do magistério e na totalidade da obra dos doutores da Igreja):

● “Por conseguinte, Nós declaramos, dizemos e definimos que é absolutamente necessário para a salvação de qualquer criatura humana ser submissa ao pontífice romano” (Bonifácio VIII, Bula Unam sanctam, 18 de novembro de 1302).

11) Em resposta ao 11, deve-se dizer que, segundo o visto nas primeiras partes deste artigo, o processo de que resultou o Concílio Vaticano II não é o indicado por Pacheco Salles, nem pela conclusão decorrente de sua tese, a saber: “Com uma cristandade inerme, ou seja, destituída do sensus fidei, que é a razão formal da autoridade e pois da legitimidade da Sede de Pedro, esta não poderia senão acabar por ser ocupada pelo inimigo – e a partir desse momento estará propriamente vacante.” Já se mostrou a insustentabilidade daquela premissa, restando porém por refutar a conclusão mesma de sedevacância, que é o que faremos ao longo da refutação da Tese de Cassiciacum e da dos sedevacantistas que se agarram, para defender sua tese, sobretudo à Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV.[2]




(Continua, com a exposição e o começo da refutação da Tese de Cassiciacum.)


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[1] Para a Tese de Cassiciacum, cf. a revista Sodalitium, especialmente a série “La Papauté matérielle”, ed. francesa, nos 46, 48 e 49, e a “Entrevista a Monseñor Guérard des Lauriers”, no 13.

[2] Repita-se, uma vez mais: não dizemos que Pacheco Salles sustente o sedevacantismo em A Figura deste Mundo. Mas dizemos que é precisamente do argumento esgrimido nessa obra que se valem muitos sedevacantistas isolados. Cf. nota 6 da primeira seção do artigo.

sábado, 7 de março de 2015

Comentários Eleison CCCXCIX (399) - Enfermidade Inimaginável

Por Dom Richard Williamson
Tradução: Andrea Patrícia (blogue Borboletas ao Luar)
07 de março de 2015


Nos Papas modernos, uma tal enfermidade nós podemos perceber,
E nenhuma mente saudável a ela pode conceber.


No verão de 1976, um tanto “quente” para a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, depois de Paulo VI ter “suspendido” Dom Lefebvre por ordenar 14 sacerdotes para a Tradição, o conflito entre o Papa e a Tradição Católica estava tão acentuado, que em agosto se deu um dos dois momentos em que o Arcebispo chegou a considerar mais seriamente se a Sé de Roma estaria vacante. É o que se pode ouvir na gravação de suas palavras, quando então disse que estava a agonizar em razão do conflito: como é possível que um verdadeiro Vigário de Cristo esteja destruindo a Igreja? O Arcebispo nunca chegou a adotar a solução sedevacantista, mas vamos ver o quão claramente ele abordou o problema, e então oferecer uma linha a mais de solução, que possivelmente teria sido pensada por ele caso não estivesse a viver um período tão conturbado. Aqui está um resumo de suas palavras proferidas em agosto de 1976: 

As pessoas me perguntam o que eu penso do Papa Paulo VI. É um incrível mistério. O verdadeiro Papa é a unidade da Igreja, inspirado pelo Espírito Santo e protegido pela promessa de Nosso Senhor para defender a Fé. Mas graças ao Vaticano II, Paulo VI está sistematicamente destruindo a Igreja. Nada é poupado: catecismo, universidades, Congregações, seminários, escolas. Tudo o que é católico está sendo destruído. É preciso que se encontre uma solução.

Uma série de falsas explicações devem ser deixadas de lado, como, por exemplo, a de que Paulo VI é um prisioneiro, drogado, vítima de seus subordinados, etc. Pois, quando ele abençoou os carismáticos, ou beijou o pé do Patriarca Ortodoxo, ele tinha por acaso um revólver em sua cabeça? Eu o tenho observado em audiências públicas, falando com a habilidade, presença de espírito, pertinência e inteligência de um homem em plena posse de suas faculdades. O Cardeal Benelli me disse que foi o próprio Papa quem me escreveu essas cartas (que reprimem a Tradição), que ele está completamente informado, que sabe exatamente o que está fazendo, que é de sua vontade, que as decisões são suas. O Cardeal disse que sempre se reporta ao Papa, e o fará novamente logo após a nossa conversa. 

Assim, poderia Paulo VI não ser um verdadeiro Papa? Esta é uma hipótese possível. Os teólogos têm estudado o problema. Eu não sei. Não digam que eu disse o que eu não disse. Mas o problema parece teologicamente insolúvel.

Dom Lefebvre falava de Paulo VI, mas o problema é essencialmente o mesmo com todos os seis Papas conciliares (exceto, talvez, João Paulo I). Dividamos o problema em dois: como pode o verdadeiro Deus permitir tal destruição de Sua Igreja? Como podem ser Seus verdadeiros Vigários os principais destruidores?

Quanto ao Deus Todo-Poderoso, em primeiro lugar, a destruição será ainda pior no fim do mundo (Lc 18, 8). Em segundo lugar, pode bem ser que Deus esteja a purificar Sua Igreja para preparar o Triunfo do Imaculado Coração de Sua Mãe. Em terceiro lugar, Deus protegeu Paulo VI de destruir completamente a Igreja, quando, por exemplo, ele tomou providências para que Paulo VI descobrisse, “por acaso”, um plano para dissolver o Papado por meio do texto da Lumem Gentium, e assim o Papa pôde bloquear o plano ao acrescentar a Nota Praevia.

Quanto aos Vigários, Dom Lefebvre nunca pareceu ter considerado a solução seguinte, e isso pode ser a razão pela qual naquele mesmo agosto ele parecia estar prestes a ser espetado pelos chifres do dilema sedevacantista-liberal. Mas se a cada ano o liberalismo se aproxima mais e mais para confundir a mente de cada homem na terra, como poderiam os Papas escapar da enfermidade universal de estar “sinceramente” equivocados? Por serem homens instruídos? Mas o liberalismo reina especialmente nas escolas e universidades. Assim, se os Papas conciliares mal instruídos estão “sinceramente” convencidos de que a “verdade” evolui, eles não estarão, por seus erros graves, nem mesmo negando com pertinácia o que sabem ser definido como Verdade Católica, pois mesmo a Verdade definida, por ser “verdade”, evolui na direção deles.


Kyrie eleison.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas - Parte III

Autor: Prof. Carlos Andêde Nougué

II) Refutação da segunda idéia básica da tese adversária


Como se disse, a premissa menor da tese de Pacheco Salles em A Figura deste Mundo constitui propriamente a “reconstrução ideal da história” que nos ocupa neste artigo. Segundo esta, lembremo-nos, desde o fim da civilização cristã (século XIII) a fé teologal se foi deslocando nas almas católicas de sua posição central, para ser pouco a pouco substituída por um culto do dever de corte kantiano e por uma obediência cega à autoridade papal. Deixando-se de lado, sempre segundo a tese adversária, a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da verdade que salva, acabou-se por erigir, de modo tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos. Já sem poderem suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, quiseram um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor.

Para refutar esta idéia, deve-se dizer que ela inverte o que de fato se deu historicamente. Sim, porque o que em essência acabou por desembocar no Concílio Vaticano II e na apostasia quase geral da Cristandade não foi uma progressiva substituição da fé e da vida da graça por uma obediência cega, incondicional, de corte kantiano, ao Papa, por já não se suportar o governo invisível de Deus; foi antes, pela perda progressiva da fé, uma paulatina insubmissão dos estados e dos homens ao Vigário de Cristo. Ao contrário, pois, do que diz a tese de Pacheco Salles, o que progressivamente se tornou insuportável para os homens foi a devida obediência ao representante visível de Deus; e tal progressiva insubmissão, resultante da revolta da carne e do amor-próprio contra o espiritual, é conseqüência direta da perda da fé, porque, como vimos na refutação à primeira idéia central deste tipo de sedevacantismo, o próprio magistério do Papa é que é aregra próxima da fé. Vejamos, porém, o desenrolar histórico desse processo, para que assim se patenteie inequivocamente a fragilidade do argumento adversário.

Como diz o Padre Calderón em El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II, Jesus Cristo, “ao estabelecer sua Igreja na terra, não arrebata os cetros temporais, senão que, se se submetem a Ela, lhes comunica verdadeira eficácia”. Pois é exatamente no terreno das relações entre os poderes temporais e o poder espiritual que, a partir de Cristo — cuja Vida, Paixão, Morte na Cruz e Ressurreição constituíram a consumação dos tempos —, se traçam os desígnios de Deus para o percurso histórico da Igreja militante. E este percurso começa com efusão de sangue: por três séculos consecutivos, o martírio dos cristãos obra pela purificação e conversão do Império Romano.

Não por nada São Pedro, auxiliado por São Paulo, vai enraizar a Igreja no solo da Cidade “Eterna”. Já lhes viera o Espírito Santo em Pentecostes, e já lhes tinha falado o próprio Cristo ressurrecto; e eles por certo estavam divinamente orientados para colocar a Pedra no centro daquela civilização que a mesma Providência Divina preparara para ser batizada e dar à luz a Cristandade. E, com efeito, no começo do século IV Constantino se rende ao Vigário de Cristo. Sucede, todavia, que o Império Romano já agonizava, por seus mesmos defeitos originais e sua caducidade, razão por que o Papado herdaria a própria jurisdição temporal imperial: como diz ainda o Padre Calderón, “suprindo os ofícios civis ante o povo romano”, os Papas acabaram por “dobrar sua coroa de Imperador espiritual do Orbe com a de Imperador temporal da Urbe” (ibid.). É este o primeiro momentoda Cristandade.

Com a queda do Império pelas mãos dos bárbaros do Norte, e após o reconhecimento por Carlos Magno, no século XVIII, do poder temporal do Papa, inicia-se o segundo momento da Cristandade, o medieval, que mais propriamente se estende da Espanha visigótica de São Isidoro de Sevilha [século VIII] à afronta de Filipe, o Belo, a Bonifácio VIII [século XIII], mas alcança, na Península Ibérica e na América, os séculos XVI/XVII — é a Christianitas minor dos reis católicos Isabel e Fernando, Carlos V e Filipe II. Pois é sobretudo a este segundo momento que se refere o Papa Leão XIII ao dizer, na Encíclica Immortale Dei, que “tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os estados. Naquela época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil”. É o momento em que se traduz plenamente na realidade a doutrina da subordinação essencial do poder político ao poder eclesiástico, longamente desenvolvida por Santo Hilário, São Gregório Nazianzeno, São João Crisóstomo, Santo Ambrósio e, especialmente, Santo Agostinho e São Gregório Magno, e consolidada pelo próprio Magistério romano e por teólogos como Hugo de São Vítor, São Bernardo e Santo Tomás de Aquino.

Muito mais que serem uma espécie de “apoio” ou “respaldo” para a Igreja, os reinos medievais eram instituídos por Ela. Explicita-o a tese teológica dos “dois gládios”. “Há dois poderes”, escrevia já o Papa Gelásio I (492-496) em carta ao Imperador, “pelos quais é regido o mundo: a sagrada autoridade pontifícia e o poder régio. Deles, o primeiro é muito mais importante, pois os homens, incluindo os reis, prestarão contas perante o Tribunal Divino. Pois saiba, clemente filho nosso, que embora ocupes o lugar da mais alta dignidade entre os homens, em tudo deves submeter-te fielmente àqueles que têm a seu cargo as coisas divinas e defendê-los, tendo em vista a tua salvação.”[1]

“As palavras do Evangelho”, escreverá o Papa Bonifácio VIII na Bula Unam Sanctam, de 18/11/1302, “nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, ambas em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja, enquanto a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do sacerdote; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do sacerdote. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa [essencialmente, como se acaba de ver] à autoridade espiritual.”

É neste segundo momento da trajetória da Igreja militante que, sob a tutela de sua Hierarquia, os antigos povos bárbaros, agora cristãos, erguem as ordens políticas mais sãs e mais florescentes que já houve na terra. A subordinação dos poderes civis ao poder eclesiástico foi-se “plasmando em ritos e costumes, muito especialmente a coroação eclesiástica de imperadores e reis” (Padre Calderón,ibid.), o que permitiu, por exemplo, que um Papa como São Gregório VII (1073-1085) pudesse depor, além de excomungar, o tão poderoso imperador HenriqueIV: “Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, creio que por ti me veio de Deus o poder ligar e desligar no céu e na terra. Assim, confiando nesta fé, da parte de Deus todo-poderoso e em virtude de teu poder e de tua autoridade, tiro ao Rei Henrique o governo de todo o reino da Alemanha e da Itália; desligo todos os cristãos dos vínculos do juramento que lhe fizeram ou que lhe farão, e proíbo que qualquer o reconheça por rei”.[2] É neste segundo momento que aparecem ordenações como as Siete Partidas (circa 1270) do Rei Afonso X, segundo as quais “todas as coisas pertencem à Igreja Católica”;[3] ou como as Ordenações Del-Rei Dom Duarte (circa 1436), pelas quais se “manda que as leis e constituições de Portugal não sejam contrárias aos cânones e direitos da Santa Igreja”.[4]

E, mais ainda que serem instituídos pela Igreja, os reinos cristãos faziam parteda Igreja. “Assim como Deus, criador de todas as cosas”, explica-o Inocêncio III, “pôs dois grandes astros no céu, o astro maior para presidir o dia, e o astro menor para presidir a noite, assim também, no firmamento da Igreja universal, que é chamada pelo nome de céu, constituiu duas grandes dignidades: a maior, para que, como durante os dias, presida as almas, e a menor, para que, como durante as noites, presida os corpos, e estas são a autoridade pontifícia e a autoridade real. Ademais, assim como a lua recebe sua luz do sol e em verdade é menor que ele tanto em quantidade como em qualidade, e também quanto à sua situação e ao seu efeito, assim também o poder real recebe da autoridade pontifícia o esplendor de sua dignidade; quanto mais se detém a olhá-la, mais se embeleza com a luz maior, e, quanto mais se afasta de seu olhar, mais perde seu esplendor”.[5]

E efetivamente, à medida que “os reis enfraqueçam o domínio do poder eclesiástico sobre a ordem política, vão enfraquecer seu próprio poder e autoridade: se Cristo não reina sobre eles, eles não reinam sobre os povos” (Padre Calderón, ibid.), processo que culminará em revoluções como a francesa.

E o fato é que, logo após o ápice do século XIII, logo após a consolidação das Universidades regidas pela Sagrada Teologia, logo após a construção das esguias igrejas góticas, logo após o erguimento dessa catedral que é a obra de Santo Tomás de Aquino, a Cristandade começa a acabar, com o fim da perfeita ordenação da jurisdição temporal à espiritual. A querela entre o Papa Bonifácio VIII e Felipe, o Belo, e a já referida afronta deste àquele prenunciam a decadência da Cidade cristã. Os reis e demais governantes progressivamente já não quererão estar sob o cetro de Jesus Cristo, deixando de aceitar o que a Verdade atesta, a saber, que a potestade espiritual tem não só de instituir a temporal, mas, por isso mesmo, deve “julgá-la se não for boa […]. Logo, se a potestade terrena se desviar, será julgada pela potestade espiritual [...]. Pois bem, submeter-se ao Romano Pontífice, Nós o declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos como de toda a necessidade para a salvação de qualquer humana criatura” (Bula Unam Sanctam). Começa, assim, com a negação desta necessidade, “o ocaso da fé no Ocidente” (Padre Calderón, ibid.), e o mundo que era composto de reinos vassalos de Cristo Rei sob a paz de seu Vigário se transformará, entre o século XIV e o XVIII, no mundo das monarquias absolutas e dos “sóis que nunca se põem”. É a ante-sala das revoluções e suas guilhotinas, fuzilamentos e massacres, das quais brotará o mundo francamente anticatólico que chafurda no pecado à espera do Anticristo.

Múltiplos e complexos são, sim, os fatores que determinaram aquela rebelião dos reis, rebelião que, como já dito, se pode reduzir à da carne e do amor-próprio contra a primazia do espírito e da glória devida a Deus. Entre tais fatores, certamente está a influência de homens como o franciscano Duns Scott (1270-1308) e sua hipertrofia da vontade; Dante (1265-1321) e seus dois fins últimos do homem, um espiritual e outro temporal; o também franciscano Guilherme de Ockham (1300-1349) e sua navalha, que em verdade também corta não só os universais, mas o próprio império espiritual da Igreja sobre os poderes políticos; o dominicano Francisco de Vitória (1483-1512) e seu direito natural independente do direito positivo divino; Maquiavel (1469-1527) especialmente, com sua transformação da ética em assunto de foro íntimo e da política em mera questão de manutenção do poder a qualquer custo; o jesuíta Francisco de Suárez (1548-1617)e sua redução do político a uma pretensa soberania popular; etc., etc., etc. Mas sem sombra de dúvida, como também já dito, o principal dos fatores que determinaram aquele processo foi a diminuição da fé. “O poder político”, como escreve o Padre Calderón (ibid.), “necessita subordinar-se essencialmente ao eclesiástico para poder cumprir sua missão; mas a potestade da Igreja sobre a ordem temporal é de natureza espiritual, e, portanto, a eficácia de seu poder depende da viveza da fé. A Igreja não tem exército e polícia para obrigar os recalcitrantes.” Tal relação de subordinação se pode comparar, analogicamente, à relação entre a alma e o corpo: com efeito, na mesma medida em que diminui a fé, perde o poder eclesiástico — a alma — domínio sobre o corpo social, “e são cada vez mais fracos os remédios que pode aplicar e cada vez mais violentos os ataques que há de sofrer” (idem). Em razão desse processo, os Papas já não terão efetivas condições de instituir e destituir os governantes, porque os reinos e seus reis já não serão suficientemente cristãos para que o possam fazer; os Papas só têm efetivo poder para firmar bons governos temporais e impedir os perversos ou tirânicos enquanto se mantém viva a fé do povo e dos reis. Com efeito, lê-se no Livro de Jó (XXXIV, 30) que Deus “faz reinar o homem hipócrita por causa dos pecados do povo”; e completa-o Santo Tomás:[6] “É preciso, portanto, eliminar o pecado, para que cesse a ferida da tirania.” Mas, como se disse, a potestade espiritual não o podia fazer senão enquanto seguisse vigente na sociedade a fé. Não seguiu; e o povo deixou de ver no Magistério da Igreja a autoridade delegada por Cristo para impor infalivelmente doutrina e costumes, e para instituir reinos segundo o que se lê em Jerônimo I, 10: “Eis que ponho em tua boca minhas palavras; veja que te constituo hoje sobre as nações e reinos para arrancar e destruir, para arruinar e assolar, para edificar e plantar”, brandindo sempre, como se diz em Efésios VI, 17, “a espada do espírito, que é a palavra de Deus”. Daí que, como escreve o Padre Calderón (ibid.), “ao quererem sacudir o suave jugo de Nosso Senhor, necessariamente a primeira medida dos reis será voltar a espada que tinham recebido de Deus para a vindita do mal – ‘não em vão tem a espada, porque é ministro de Deus, vingador para castigo daquele que age mal’ (Rom., XIII, 4) – contra a espada espiritual que a sujeita e domina”. A harmonia (tão perfeita quanto possível no estado de natureza ferida) que se alcançou na Idade Média entre os dois poderes, com a devida subordinação essencial do temporal ao espiritual, muda-se então em dura guerra, e a partir de então “os Papas deverão pagar a preço de sangue a audácia de recordar às potestades temporais a doutrina daUnam sanctam” (Padre Calderón, ibid.).

Sangue, mas também omissão da íntegra doutrina da ordenação do poder político ao eclesiástico. Com efeito, desde a Bula de Bonifácio VIII até parte do magistério de Leão XIII — ou seja, durante cerca de sete séculos —, o tom do Papado quanto a esta matéria capital é antes apologético. A Igreja é uma cidade sitiada. Será preciso esperar São Pio X e especialmente Pio XI para que o tema volte aos documentos papais com todos os seus contornos e vigor, e caberá a este último Papa fazê-lo ganhar corpo doutrinal definitivo com a Encíclica Quas primas, a Constituição do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Infelizmente, porém, a Cidade espiritual já não está apenas sitiada; já está minada por um longo trabalho de sapa, que a carcome do interior; o resultado será a desolação operada pelo Concílio Vaticano II e a consolidação, na maior parte da Hierarquia e dos fiéis, da Religião do Homem que se quer Deus.

Dessa desolação e dessa conseqüente consolidação da Religião do Homem decorre, sim, uma obediência cega por parte dos fiéis ao Papa. Mas não se trata da devida obediência aos Papas em seu ofício de impor e imperar doutrina sob a assistência do Espírito Santo, com o que seu magistério se torna regra próxima da fé; trata-se de obediência cega a uma potestade carente de verdadeira autoridade doutrinal, e exercida, por isso mesmo, de modo maquiavélico.

Ao contrário, portanto, do que diz a tese de Pacheco Salles, aquela obediência cega é resultado, sim, de uma perda da fé, mas de uma perda da fé no magistério eclesiástico como autoridade e regra para a crença do conjunto da Igreja; e, ao contrário ainda do que pode fazer crer a tese adversária, é resultado também da renúncia da mesma Hierarquia, a partir do Concílio Vaticano II, à sua própria autoridade doutrinal, sendo em função dessa renúncia que ela passa a governar a Igreja ao modo de qualquer governo democrático liberal. A tese adversária, todavia, para justificar seu sedevacantismo pré-concluído, tem de encontrar para ele premissas mais sólidas, e encontra a premissa menor numa “reconstrução ideal da história” que inverte os dados da realidade tal como mostrado aqui.
Refuta-se assim, suficientemente, a segunda idéia básica da tese de A Figura deste Mundo.



(Continua, com as respostas particulares aos diversos itens numerados na exposição da tese adversária.)



[1] Patrologia Latina Migne, t. LIV, col. 42.
[2] Citado por Glez, Pouvoir du Pape dans l’ordre temporel, en DTC, col. 2714, apud Padre Calderón, op. cit.
[3] Las Siete PartidasBOE, 1999 (edição fac-similar da edição de 1555, com glosas de Gregorio López).
[4] Cód. 9614 dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
[5] Carta Sicut universitatis, 30-10-1198, Denzinger-Hünermann 767; negrito nosso.
[6] De regno, lib. 1, cap. 7.

domingo, 1 de março de 2015

Comentários Eleison CCCXCVIII (398) - Sinal Encorajador

Por Dom Richard Williamson
Tradução: Andrea Patrícia (blogue Borboletas ao Luar)
28 de fevereiro de 2015


SINAL ENCORAJADOR



Disse um bispo: dar testemunho é o que a Tradição deve fazer.
Mas bispo, por favor, faça mais do que isso, para que as ovelhas não venham a perecer.


Depois de três números destes “Comentários’ terem tentado mostrar o novo modo de pensar pelo qual a Fraternidade Sacerdotal São Pio X de Dom Lefebvre está sendo mortalmente envenenada, vamos apresentar um sinal encorajador de que sua Fraternidade não está ainda completamente morta: citações de um sermão dado em 1º de janeiro deste ano em Chicago por Dom Tissier de Mallerais, um dos quatro bispos consagrados para a FSSPX em 1988. As pessoas frequentemente perguntam por que tão pouco é ouvido dele, e isto se dá porque ele é conhecido por ser um homem tímido, mas honesto, e com uma fé forte, uma mente clara e um grande conhecimento e amor pelo Arcebispo. Talvez ele tenha amado a Fraternidade “não sabiamente, mas muito bem”, e por isso não esteja vendo, ou não querendo ver, como seus superiores têm, já por muitos anos, traído lentamente, mas firmemente, a luta de Dom Lefebvre pela Fé. Será que o Bispo está a pôr a unidade da Fraternidade acima da Fé da Igreja? Mas no mês passado ele disse muitas coisas que não poderiam ser ditas de melhor forma. 

Ele citou os escritos do Arcebispo em seu Itinerário Espiritual (cap. III, p.11 da versão espanhola em PDF): É, portanto, todo sacerdote que quer permanecer católico tem por estrito dever de separar-se da Igreja conciliar enquanto ela não reencontre a Tradição da Igreja e da Fé católica. Então, para enfatizar, Dom Tissier disse: “Permitam-me repetir isto”, e leu a citação mais uma vez.