Ordenação sacerdotal de Dom Tomás de Aquino

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Sobre o Primeiro Concílio Infernal


Via Non Possumus

Relato do primeiro concílio que houve no inferno, no qual “se conjuntaram todos os vícios e pecados do mundo, dali sairam a mantira, as seitas e erros, e toda iniquidade teve sua origem daquele caos e congregação abominável; e a seu príncipe servem todos os que praticam a maldade.”

O presente texto é um extrato dos capítulos IX e X do livro I da obra “Mística Cidade de Deus”, da Ven. Sor Maria de Jesus de Ágreda.


106. E travou-se no céu (v.7) uma grande batalha: Miguel e seus anjos pelejavam contra o dragão, e o dragão com seus anjos pelejavam contra ele. Havendo manifestado o Senhor o que fica dito aos bons e aos maus anjos, o santo príncipe Miguel e seus companheiros, com a divina permissão, pelejaram com o dragão e seus sequazes, Batalha admirável, combate de entendimentos e vontades. Com o zelo que ardia em seu coração pela honra do Altíssimo, e armado com o poder divino e sua própria humildade, São Miguel resistiu à desvanecida soberba do dragão, dizendo: Digno é o Altíssimo de honra, louvor e reverência; de ser amado, temido e obedecido por toda a criatura; é poderoso para fazer tudo quanto quer, nada podendo querer que não seja muito justo. Incriado e sem dependência de outro ser, deu-nos gratuitamente quanto temos, criou-nos e formou-nos do nada e do mesmo modo pode criar outros seres, quando e como for de seu beneplácito. É razoável que prostrados e submissos em sua presença, adoremos Sua Majestade e real grandeza. Vinde, pois, anjos, segui-me e adoremo-lo, louvando seus admiráveis e ocultos juízos, suas perfeitíssimas e santíssimas obras. É Deus Altíssimo, superior a toda criatura, e não o fora se pudéssemos compreender suas grandes obras. Infinito em sabedoria e bondade; rico em tesouros e benefícios; Senhor de tudo, de ninguém necessitando, pode comunicá-los a quem mais servido for, não podendo errar em sua escolha. Pode amar a quem quiser, dar-se, elevar, criar e enriquecer a quem for de seu gosto, e em tudo será sábio, santo e poderoso. Adoremo-lo com ações de graça pela maravilhosa obra da Encarnação e dos outros favores para seu povo, inclusive sua reparação, caso cair. A este Suposto[1] de duas naturezas, divina e humana, adoremo-lo, reverenciemo-lo e recebamo-lo por nosso chefe, confessando que é digno de toda a glória, louvor e magnificência, autor da graça e da glória, reconheçamos sua virtude e divindade.

Com estas armas pelejavam São Miguel e seus anjos, combatendo com fortes raios ao dragão e aos seus asseclas armados de blasfêmias. Defrontando o santo Príncipe, mas não lhe podendo resistir, enfurecia-se, e pelo tormento que sofria desejara fugir. A vontade divina, porém, ordenara que fosse não apenas castigado, mas também vencido, e a seu pesar conhecesse a verdade e o poder de Deus. Blasfemando bradava: Deus é injusto por elevar a natureza humana acima da angélica. Eu sou o mais excelente e formoso anjo, e a mim se deve a exaltação. Hei de estabelecer meu trono acima das estrelas (Is 14, 13) e serei semelhante ao Altíssimo. Não me sujeitarei a ninguém de natureza inferior à minha, nem consentirei que alguém me preceda e seja maior que eu. Faziam-lhe eco os apóstatas, seus sequazes, ao que lhes replicou São Miguel: - Quem há que se possa igualar e se comparar com o Senhor que habita os céus? Acaba, inimigo, com tuas formidáveis blasfêmias, e já que a iniquidade se apoderou de ti, separa-te de nós, infeliz, e caminha com tua cega ignorância e maldade para a tenebrosa noite e caos das penas infernais. Quanto a nós, ó espíritos do Senhor, reverenciemos esta ditosa mulher que há de ministrar carne humana ao eterno Verbo, e reconheçamo-la por nossa Rainha e Senhora.

E assim, como pela virtude divina havia aparecido aquele sinal, quis também Sua Majestade fazer surgir o outro sinal do dragão vermelho. Nessa figura foi ignominiosamente expulso do céu, com espanto e terror de seus sequazes e admiração dos santos anjos por aquela nova demonstração do poder e justiça de Deus.

Difícil é descrever com palavras o que se passou nesta memorável batalha, por ser enorme a diferença entre conceitos materiais e as operações de tais e tantos espíritos angélicos. Os maus, entretanto, não triunfaram (Ap 12, 8) porque a injustiça, mentira, ignorância e malícia não podem prevalecer contra a equidade, verdade, luz e bondade, nem tais virtudes podem ser vencidas pelos vícios. Por isto, diz o Apocalipse, daí em diante seu lugar não foi encontrado no céu. Com os pecados que cometeram, estes ingratos anjos tornaram-se indignos da eterna visão e companhia do Senhor, e sua lembrança apagou-se da sua mente divina onde, antes da queda, estavam gravados pelos dons de graça que lhes outorgara. Privados do direito que tinham aos lugares que lhes haviam sido preparados sob a condição de obedecerem, este direito transferiu-se aos homens e a estes foram reservados. Tão apagados foram os vestígios dos anjos apóstatas, que jamais serão encontrados no céu. Oh! infeliz maldade, nunca assaz encarecida infelicidade que pereceu tão espantoso e formidável castigo!

E foi lançado aquele grande dragão (Ap 12, 9) e antiga serpente que se chama diabo e satanás que engana a todo o orbe e foi precipitado à terra com seus anjos. Transformado em dragão, foi Lúcifer precipitado do céu pelo santo príncipe Miguel, por aquela invencível palavra: Quem como Deus? Tão poderosa que pôde derrubar com formidável ignomínia, às profundezas da terra, aquele soberbo gigante e todos os seus exércitos. Ali, com sua infelicidade e castigo, começou a receber os novos nomes de dragão, diabo e satanás. Privado da felicidade e honra que desmereceu, foi também despojado de seus honrosos títulos, adquirindo os que traduzem sua ignomínia. E a maldade que intimou a seus confederados para enganarem e perverterem os habitantes do mundo, manifesta sua iniquidade. Deste modo, aquele que presumia destruir os povos foi lançado aos infernos e às profundezas do lago, como diz Isaías, Capítulo 14 (v. 15). Seu cadáver foi entregue à podridão e aos vermes de sua má consciência. Em Lúcifer cumpriu-se tudo o que o Profeta escreve naquela passagem.

Ficando o céu despojado os maus anjos, foi afastado o véu da Divindade para os bons e obedientes. Triunfantes e gloriosos estes, castigados aqueles, prossegue o Evangelista dizendo que ouviu uma ouviu uma grande voz no céu que dizia: - Agora foi estabelecida a salvação e a força e o reino de nosso Deus, e o poder do seu Cristo: porque foi precipitado o acusador de nossos irmãos, que na presença de nosso Deus os acusava de dia e de noite (Ap 12, 10). Esta voz ouvida pelo Evangelista foi a da pessoa do Verbo. Ouvida e entendida por todos os santos anjos, chegaram seus ecos até o inferno. Ali espavoriu e fez tremer os demônios, ainda que não compreenderam todos os mistérios que encerrava, mas somente aquilo que o Altíssimo lhes permitiu entender para sua pena e castigo. Aquela voz foi proferida pelo Filho, em nome da humanidade que havia de assumir. Pediu ao Eterno Pai que fosse estabelecida a salvação, poder e reino de Deus e do Cristo, porquanto já havia sido expulso o acusador dos homens, irmãos do mesmo Cristo Senhor nosso.
 
Ai da terra e do mar, porque o demônio desceu a vós com grande ira, sabendo que lhe resta pouco tempo! (v. 12). Ai da terra, onde tão inumeráveis pecados e maldades serão cometidos. Ai do mar, que vendo tais ofensas ao Criador, não lançou suas ondas para afogar os transgressores, vingando as injúrias do seu Criador e Senhor. Ai do mar profundo da endurecida maldade daqueles que seguiram o demônio que desceu até vós para guerrear-vos, com raiva tão inaudita e cruel que não tem semelhante! Ira de ferocíssimo dragão e mais que leão devorador (lPd 5, 8) que tudo pretende aniquilar, considerando curta toda a duração dos séculos para satisfazer seu ódio. Tanta é a sede e a ânsia de perder os mortais, que não lhe basta o tempo limitado de suas vidas. Sua fúria desejaria, se fosse possível, tempos intermináveis para combater os filhos de Deus. Enfurece-se especialmente contra aquela ditosa mulher que lhe há de esmagar a cabeça (Gn 3, 15).

Quando a antiga serpente viu o infelicíssimo lugar e estado em que caíra, abrasou-se mais no furor e inveja, à semelhança de um veneno que o atormentava. Contra a mulher, Mãe do Verbo humanado, concebeu tal indignação que nenhuma língua nem entendimento humano pode explicar nem compreender. Do que sucedeu imediatamente após ter sido este dragão precipitado nos infernos com seus exércitos de maldade, direi alguma coisa aqui, conforme me é possível, de acordo com o que me foi intelectualmente manifestado.

No momento em que Lúcifer e seus sequazes inauguraram o inferno, reuniram-se todos para fazer um conciliábulo que durou até a quinta-feira pela manhã. Neste tempo empregou Lúcifer toda sua diabólica sabedoria e malícia em estudar e decidir com os demônios o modo para mais ofender a Deus, em vingança do castigo que lhes havia imposto. A última conclusão a que chegaram, pelo que sabiam do amor que Ele teria aos homens, foi que a maior vingança e ofensa a Deus, seria impedir nas criaturas humanas os efeitos daquele amor. Para tanto, enganariam, persuadiriam e forçariam quanto possível, os homens a perderem a amizade e graça de Deus, tornando-os ingratos e rebeldes à vontade divina.

Nisto - dizia Lúcifer - temos que trabalhar, empregando toda nossa força, atenção e ciência. Arrastaremos as criaturas humanas para nosso ditame e vontade, a fim de perdê-las. Perseguiremos esta geração de homens e os privaremos do prêmio que lhes está prometido. Procuremos, com toda nossa vigilância, que não cheguem a ver a face de Deus, visão a nós, injustamente negada. Hei de obter contra eles grandes triunfos e tudo destruirei e submeterei à minha vontade. Semearei novas seitas, erros e leis, em tudo contrárias às do Altíssimo. Suscitarei entre esses homens, profetas e chefes que propaguem as doutrinas (At 20, 30) que eu semear e finalmente, para vingar-me do seu Criador, metê-los-ei comigo neste profundo tormento. Afligirei os pobres, oprimirei os aflitos, perseguirei os fatigados, semearei discórdias, causarei guerras, instigarei uns povos contra outros. Formarei soberbos e arrogantes, espalharei a lei do pecado, e quando por ela me hajam obedecido, sepultá-los-ei neste fogo eterno, sendo os lugares de maiores tormentos para aqueles que comigo mais se parecerem. Este será meu reino e a recompensa que darei aos meus servos.

Ao Verbo humanado farei guerra, ainda que seja Deus, pois também será homem de natureza inferior à minha. Elevarei meu trono e dignidade acima da sua, vencê-lo-ei e o derrubarei com meu poder e astúcia. A mulher que há de ser sua Mãe, perecerá em minhas mãos. Que representa para meu poder e grandeza uma só mulher? Vós, demônios, que tostes ofendidos como eu, segui-me nesta vingança, assim como o fizestes na desobediência. Fingi que amais aos homens, para perdê-los; servi-os, para destruí-los e enganá-los. Ajudai-os com o fim de pervertê-los e trazê-los a meus infernos. Não há língua humana que possa explicar a malícia e furor deste primeiro conciliábulo, que Lúcifer armou contra o gênero humano que ainda nem sequer existia. Ali se forjaram todos os vícios e pecados do mundo; daí saíram a mentira, as seitas, os erros e toda a iniquidade originou-se daquele caos e abominável assembleia. Ao seu chefe servem todos quantos praticam a maldade.
 
E o dragão se indignou contra a mulher e foi fazer guerra ao resto de sua descendência que guarda os mandamentos de Deus e retém o testemunho de Jesus Cristo (v. 17). Completamente derrotado pela Rainha da criação, atormentado pela vergonha sua e de todo o inferno, o dragão bateu em retirada, decidido a fazer crua guerra às demais almas da geração e descendência de Maria Santíssima. São os fiéis assinalados com o testemunho e Sangue de Cristo no Batismo, observantes dos seus mandamentos. Quando Lúcifer verificou que nada podia conseguir contra a cabeça da santa Igreja, Cristo Senhor Nosso e contra sua Mãe Santíssima, com maior intensidade voltou toda a sua ira, e seus demônios, contra os membros dessa Igreja. Com especial indignação combate as virgens de Cristo, e trabalha por destruir a virtude da castidade virginal, semente escolhida e herança da castíssima Virgem Mãe do Cordeiro. Para tudo isso diz que: Permaneceu o dragão sobre a areia do mar (v. 18) que é a inconstante vaidade deste mundo, da qual o dragão se sustenta, comendo-a como feno (Jó 40, 10).
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[1] Suposto – Cristo, Homem-Deus, que subsiste por si mesmo. (N. da T.)

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