Ordenação sacerdotal de Dom Tomás de Aquino

domingo, 22 de janeiro de 2017

São Thomas More - Preparação para receber a Comunhão

Preparação para receber a Comunhão

Recebem o sagrado Corpo de Nosso Senhor sacramental e espiritualmente aqueles que recebem devida e dignamente o Santíssimo Sacramento. Quando digo “dignamente”, não pretendo afirmar que haja um homem tão bom ou que possa ser tão bom que a sua bondade o torne, com toda a justiça e razão, digno de receber no seu vil corpo terreno a Carne e Sangue santos, bem-aventurados e gloriosos, do próprio Deus todo-poderoso, com a sua alma celestial e a majestade da sua divindade eterna; quero antes dizer que o homem pode preparar-se, colaborando com a graça de Deus, para chegar a um estado tal que a incomparável bondade de Deus, na sua liberal abundância, se digne tomá-lo e aceitá-lo como digno de receber o seu precioso e inestimável Corpo no corpo de um simples servidor.

Tal é a maravilhosa generosidade de Deus todo-poderoso, pois Ele não só se digna, mas até se deleita de verdade em estar com os homens, se estes se preparam para recebê-lo com alma limpa e virtuosa, pelo que diz: Delitiae meae esse cum filiis hominum: “As minhas delícias são estar com os filhos dos homens” (Pr. VIII, 31).

E como podemos duvidar de que Deus se deleita com os filhos dos homens quando o próprio Filho de Deus e verdadeiro Deus todo-poderoso quis não só fazer-se filho do homem, isto é, filho de Adão, o primeiro homem, mas além disso quis sofrer na sua inocente humanidade a dolorosa Paixão para a redenção e restauração do homem!


Para lembrança e memorial dessa Paixão, não menosprezou aceitar por dignos aqueles homens que a si mesmos não se fizeram deliberadamente indignos de receber o próprio santo Corpo nos seus corpos pra inestimável bem-estar das suas almas.

Mais ainda, na sua soberana paciência, não se recusa a entrar corporalmente nos corpos vis daqueles cujas mentes sujas rejeitam recebê-lo graciosamente, e não frutuosa nem espiritualmente, isto é, recebem o seu santíssimo Corpo nos seus corpos sob o sinal sacramental, mas não recebem a virtude e o efeito do Sacramento, a graça pela qual se tornariam membros vivos, incorporados ao sagrado Corpo Místico de Cristo. Em lugar dessa graça vivificante, recebem o seu juízo e a sua condenação.

Alguns, devido à injuriosa enormidade do propósito mortalmente pecaminoso com que se atrevem a receber esse Corpo sagrado, merecem que o diabo (com a permissão de Deus) entre pessoalmente nos seus corações, de forma que nunca mais têm a graça de expulsá-lo: pois assim como um homem monta e controla um cavalo com o freio e as esporas, e o faz ir aonde quiser guiá-lo, assim o diabo governa e conduz o homem com sugestões interiores, refreando-o diante de toda a ação boa e esporeando-o a praticar o mal, até que finalmente o leva a todo o tipo de maldade. Assim fez com o falso e traidor Judas, que recebeu aquele sagrado Corpo em pecado: primeiro, o diabo levou-o a trair o próprio Corpo santo do seu amabilíssimo Senhor, a quem acabava de receber sacrilegamente, e, umas poucas horas depois, conduzindo-o à sua própria e desesperada destruição (cfr. Mt. XXVI, 21-25 e XXVII, 3-5).

Por conseguinte, temos grave motivo para considerar bem, com grande temor e reverência, o estado da nossa própria alma quando nos aproximamos da mesa de Deus, e temos de purificar e limpar as nossas almas da melhor maneira que possamos — com a ajuda da especial graça divina, que antes teremos invocado com diligência —, mediante a confissão, a contrição e a penitência, com o propósito firme de rejeitar a partir desse momento os desejos soberbos do diabo, a cobiça avara da miserável riqueza terrena e as inclinações impuras da carne suja. E temos de decidir-nos com todas as nossas forças a perseverar nos caminhos de Deus e na santa pureza de espírito, não aconteça que, se ousarmos receber irreverentemente esta pérola preciosa (cfr. Mt. VII, 6), esta pérola pura, o Corpo santo do nosso próprio Salvador contido sob o sinal sacramental do pão, como [se fôssemos] um porco fossando na sujeira e refocilando-se no barro, e o pisotearmos sob os pés asquerosos das nossas más inclinações, estimando-as mais do que o seu corpo, e com a intenção de voltar a chafurdar e a refocilar-nos no charco fétido dos pecados, não aconteça, [digo,] que a legião dos diabos obtenha permissão de Cristo para entrar em nós, como obtiveram permissão para entrar nos porcos de Gerasa; e que, assim como os lançaram a correr e não pararam até afoga-los no mar, assim nos lancem também nós a correr, e não deixem de afogar-nos no mar profundo da aflição eterna, se Deus, na sua grande misericórdia, não os refrear e nos der a graça de arrepender-nos.

O bem-aventurado Apóstolo São Paulo adverte-nos deste horroroso perigo quando diz na sua primeira Epístola aos Coríntios: Quicumque manducaverit panem & biberit calicem Domini indigne, réus erit corporis &sanguinis Domini: “Quem quer que coma este pão ou beba o cálice do nosso Senhor indignamente, será réu do Corpo e do Sangue de nosso Senhor” (1Cor. XI, 27).

Aqui tendes, bons leitores cristãos, uma sentença terrível e formidável que o próprio Deus pronuncia, pela boca do seu santo Apóstolo, contra todos os que recebem indignamente este Santíssimo Sacramento: estes se encontrarão com Pilatos, com os [príncipes dos] judeus e com o falso e traidor Judas, já que Des julga a recepção e a comunhão indignas do seu Corpo sagrado uma ofensa nefanda contra a sua Majestade, como considerou nefanda a ofensa daqueles que injusta e cruelmente o mataram.


Exame de consciência


Por conseguinte — com o propósito de evitar-nos por completo este perigo intolerável e de fazer-nos receber o Corpo e o Sangue do Nosso Senhor de tal forma que Deus, na sua bondade, nos considere dignos, e assim não venham somente a sua Carne e Sangue sacramental e corporalmente aos nossos corpos, mas também eficazmente com a graça do Espírito Santo às nossas almas —, diz São Paulo na passagem antes recordada: Probet sepsum homo, & sic de pane illo edat, & de cálice bibat: “Examine-se a si mesmo o homem e desta sorte como daquele pão e beba daquele cálice” [1 Cor. XI, 28].

Mas de que maneira nos examinaremos? Não podemos acudir atabalhoadamente à mesa de Deus, mas havemos de examinar-nos antes, com tempo suficiente. Devemos, como dizia, considerar a fundo e examinar com certeza em que estado se encontra a nossa alma.

Mas não só seria muito difícil, se não talvez impossível, por mais esforço e diligência que puséssemos, alcançar uma certeza plena e indubitável  [de que não estamos em pecado mortal] sem especial revelação de Deus. Como diz a Escritura: Nemo vivens scit utrum ódio vel amore dignus sit: “Ninguém sabe, enquanto está vivo, se é objeto do amor ou do ódio de Deus” [Ecl. IX, 1]. E noutro lugar: Etiamsi simplex fuero, hoc ipsum ignorabit anima mea: “Se pensasse que sou inocente, isto é, sem pecado, é que não me conheceria a mim mesmo” [Jó IX. 21].

No entanto, Deus, na sua imensa bondade, satisfaz-se quando fazemos com diligência o que podemos para ver se não albergamos nenhuma intenção de pecado mortal. Pode acontecer que, apesar da nossa diligência, Deus — cujo olhar penetra muito mais profundamente no mais íntimo do nosso coração [do que nós mesmos] — enxergue algum pecado que nós não vemos, pelo que diz São Paulo: Nihil enim mihi consciussm, sed non in hoc isustificatus sum: “Embora a consciência não me pese por coisa alguma, nem por isso me tenho por justificado” [1 Cor. IV, 4]. Mas, na sua grande liberalidade, Deus aceita a diligência que pomos no exame de tal forma que não nos imputa qualquer outro pecado para nós desconhecido, antes pelo contrário, purifica e limpa esse pecado com a força e a virtude do Sacramento.




Neste exame do nosso eu de que fala São Paulo, um ponto muito especial deve ser examinar-nos e ver se temos a verdadeira fé e crença com relação a este Sacramento. Isto é, se de verdade cremos, como é na realidade, que sob a forma e aparência do pão está o verdadeiro Corpo bendito, a Carne e o Sangue do nosso santo Salvador, Cristo; o mesmo Corpo que morreu, o mesmo Sangue que foi derramado sobre a cruz pelos nossos pecados, e que ao terceiro dia ressuscitou gloriosamente para a vida e, com as almas dos santos tiradas do inferno, subiu maravilhosamente para o céu, onde está sentado à direita do Pai e de onde descerá visivelmente na grande glória para julgar os vivos e os mortos e retribuir a todos os homens segundo as suas obras.

Temos que ver, repito, se cremos firmemente que este Santo Sacramento não é um signo desnudado, ou uma mera figura, ou um [simples] penhor daquele Corpo santo de Cristo; mas que é, em memória perpétua da amarga Paixão que por nós sofreu, o mesmo Sangue precioso de Cristo que padeceu, agora consagrado e entregue a nós pelo seu poder todo-poderoso e pelo seu inefável amor.

Este artigo de fé é de tal necessidade e de tal peso naqueles que têm idade e discernimento para receber este Santo Sacramento que, sem essa fé, recebem-nos unicamente para a sua própria condenação. E este ponto, íntegra e firmemente crido, deve ser ocasião para mover todo o home a recebe-lo muito bem preparado em todos demais aspectos, pois devemos reparar bem nas palavras de São Paulo: Qui manducat de hoc pane, & bibit de cálice indigne, iudicium sibi manducat & bibit, non diiusdicans corpus Domini: “Quem comer deste pão ou beber deste cálice indignamente, engole e bebe a sua própria condenação, não fazendo o devido discernimento do corpo do Senhor.” [1 Cor. XI, 27-29].

O Bem-aventurado Apóstolo declara precisamente nesta passagem que quem de qualquer forma receber indignamente este excelentíssimo Sacramento, recebe-o para a sua própria condenação, porque pela sua própria conduta, nessa sua comunhão indigna, declara que não o discerne nem o julga nem o estima como esse verdadeiro Corpo do nosso Senhor que na realidade é.

Se esta verdade estivesse profundamente gravada no nosso peito, estaríamos na verdade muito endurecidos se ela não suscitasse em todos os nossos corações um fervor de devoção para receber dignamente esse santo Corpo.

Mas, certamente, não se pode duvidar por outro lado de que, se algum homem crê que se trata do verdadeiro Corpo de Cristo, e mesmo assim não se inflama em desejos de o receber com devoção, esse homem provavelmente receberia o Sacramento muito friamente e longe de toda a devoção e [mais ainda] quem comungasse crendo que não se trata do seu Corpo, mas apenas de um penhor seu no lugar do seu Corpo, fá-lo-ia sem devoção alguma.


Humildade e reverência


Tendo agora firmemente no nosso coração a fé íntegra sobre este assunto, a saber, que o que recebemos é o verdadeiro Corpo de Cristo, parece-me que não fará muita falta que recebamos mais ensinamentos ou alguma outra exortação para nos sentirmos impelidos a incitados a recebe-lo com humildade e reverência.

Se houvesse um grande príncipe que, por especial favor, viesse visitar-nos na nossa própria casa, quantas coisas faríamos e que esforço poríamos para que a nossa casa estivesse arrumada até o último detalhe e da melhor maneira possível! [Procuraríamos deixar] tudo tão disposto e ordenado que esse príncipe visse, por meio dessa nossa honrosa recepção, o nosso amor por ele e a grande estima que lhe temos. Se considerássemos isto e  comparássemos o príncipe deste terra com este Príncipe do céu (há menos proporção entre eles do que a que gá entre um rato e um homem), imediatamente saberíamos e aprenderíamos com quanta humildade de mente, com quanta ternura de amor no coração, com que reverência e humildade no porte, deveríamos procurar receber este glorioso Rei celestial, o Rei dos reis, Deus todo-poderoso, que tão amorosamente se digna entrar não só em nossa casa (visita da qual o nobre centurião se sabia indigno), mas até, com o seu Corpo precioso, na nossa vil e miserável carcaça, e com o seu Santo Espírito na nossa pobre alma.

Que diligência poderia bastar-nos aqui? Que solicitude poderia parecer-nos excessiva a fim de preparar a vinda deste Rei poderoso, que vem por um favor muito especial, não a nossas expensas, nem para que gastemos do que é nosso, mas para enriquecer-nos com o que é dEle? E vem apesar de tantos desgostos que rudemente lhe demos em pagamento pelos muitos e incomparáveis benefícios que nos fez. Como trabalharíamos para que a casa da nossa alma (na qual Deus viria descansar) não tivesse nem uma aranha venenosa, nem teias de aranha de pecado mortal penduradas no teto, nem sequer uma palha ou uma pluma de um mau pensamento: se pudéssemos vê-las no chão, nós as varreríamos imediatamente.

Mas, como não podemos, bons leitores cristãos, obter esta fé cristã nem nenhuma outra virtude a não ser pela graça especial de Deus, de cuja bondade procede todo o bem — como diz São Tiago: Omne datum optimum & omne donum perfectum, de sursum est descendens a Patre luminum: “Toda dádiva preciosa e todo o dom perfeito vêm do alto, descem do Pai das luzes” [Tm. I, 17] —, peçamos a sua graciosa ajuda para alcançarmos esta fé e a sua ajuda para limparmos a nossa alma em preparação da sua vinda, para que Ele possa fazer-nos dignos de recebe-lo bem. Da nossa parte, temamos sempre a nossa indignidade e confiemos audazmente na sua bondade, se não deixarmos de colaborar com Ele. Porque, se deliberadamente deixarmos de fazer a nossa tarefa, fiados e consolados na sua bondade, então a nossa esperança não será esperança, mas uma insensata presunção.


Confiança


Depois, quando nos aproximarmos da sua santa mesa, na presença do seu santo Corpo, consideremos a sua gloriosa majestade que a sua bondade esconde de nós, bem como a forma própria da sua Carne santa, encoberta sob a forma de pão para nos poupar uma confusão tal que talvez não a pudéssemos suportar, se, sendo o que somos, nós o víssemos e recebêssemos tal como é; e também para aumentar o mérito da nossa fé na obediente crença no Sacramento, que se fundamenta na sua palavra, pois os nossos olhos e a nossa razão mostram o contrário.

Como acontece que essa fé é muito fraca, embora creiamos, e está muito longe do vigor e da força que Deus quereria, digamos-lhe com o pai que tinha o filho mudo: Credo, Domine, adiuva incredulitatem meam: “Creio, Senhor, mas ajuda a minha falta de fé” [Mc. IX, 23]. E, com os seus bem-aventurados Apóstolos: Domine, adauge nobis fidem, “Senhor, aumenta-nos a fé” [Lc. XVII, 5]. e com aquele pobre publicano cheio de muita mansidão de coração, reconhecendo a nossa falta de dignidade: Deus, propitius esto mihi peccatori: “Meu Deus, tem misericórdia de mim porque sou um pecador” [Lc. XVIII, 13]. E com o Centurião: Domine, non sum dignus ut intres sub tectum meum: “Senhor, eu não sou digno de que entres na minha casa” [Mt. VIII, 8].

Mesmo assim, ao recordarmos a nossa própria indignidade e, portanto, a grande reverência, temor e assombro que devemos ter da nossa parte, não esqueçamos o seu amor infinito, que não desdenha vir a nós e ser por nós recebido apesar de toda essa nossa indignidade.

Ao vermos ou recebermos este excelente memorial da sua Morte — pois em memória dela se consagra e se nos dá o seu próprio Sangue e a sua Carne bendita —, devemos recordar e trazer à mente com terna compaixão as dores agudas da sua dolorosíssima Paixão. E, além disso, alegrar-nos e exultar na consideração do incomparável amor que Ele nos mostrou e declarou ao sofrer por nós pra nosso inestimável benefício. Assim, havemos de estar seriamente temerosos devido à nossa indignidade, mas também muito alegres e cheios de esperança ao pensar na sua imensa bondade.

Santa Isabel, ao receber a visita e saudação da nossa bem-aventurada Senhora, tendo por revelação o conhecimento interior e certo de que a nossa Senhora tinha concebido o nosso Senhor, e embora também ela estivesse de esperanças, poderia ter pensado conveniente e apropriado, pela diferença de idade [que havia entre elas], que a sua jovem prima a visitasse; mas agora, sendo esta a Mão do nosso Senhor, ficou profundamente assombrada com a sua visita e julgou-se indigna dessa honra; por isso disse-lhe: Unde hoc, ut veniat mater Domini mei ad me?: “E de onde me vem tanto bem, que a mãe do meu Senhor venha visitar-me?” [Lc. I, 43]. Mas, por maior que fosse o rubor da sua indignidade, concebeu uma alegria e um alíio tais que a sua santa criança, São João Batista, saltou de alegria no seu ventre, pelo que ela disse: Facta est vox salutationis tuae in auribus mei, exaltavit gaudio infans in útero meo: “Assim que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança no meu ventre começou a dar saltos de júbilo” [Lc. I, 44].

Assim como Santa Isabel, pelo Espírito de Deus, teve esses santos afetos, tanto de reverência ao considerar a sua indignidade diante da visita da Mãe de Deus, quanto de uma grande alegria interior, assim nesta visitação, em que não é a Mãe de Deus, como aconteceu com Santa Isabel, mas Alguém incomparavelmente mais excelso do que a Mãe de Deus o era com relação a Santa Isabel, que se digna vir e visitar a cada um de nós com a sua bendita presença, pois não vem a nossa casa, mas a nós mesmos, peçamos, digo, ajuda ao próprio Espírito Santo que a inspirou a ela, e peçamos-lhe nesta excelsa e santa visita que nos inspire de tal modo que nos envergonhe o susto reverente da nossa própria indignidade, e que também concebamos uma gozosa consolação e alívio na consideração da inestimável bondade de Deus.

 E que cada um de nós diga com reverente susto e admiração: Unde hoc, ut veniat mater Domini mei ad me?: “E de onde me vem tanto bem, que a mãe do meu Senhor venha visitar-me?” E não só a mim, mas ao meu íntimo. Com o coração cheio de alegria, poderemos verdadeiramente dizer ao contemplar a sua bendita presença: Exaltavit gaudio infans in útero meo: “A criança no meu ventre, isto é a alma no meu corpo (essa alma que deveria ser criança na inocência, como era inocente o infante São João), salta, meu Senhor, de alegria”.


Ação de graças. Fé e obras de fé


Depois de recebermos o nosso Senhor e de o termos no nosso corpo, não o deixemos só, indo-nos para outros assuntos, sem fazer mais caso dEle (pouco bem nos faria isso). Seja a nossa única ocupação atendê-lo. Falemos-lhe em devota oração, falemos com Ele em devota meditação. Digamos com o profeta. Audiam quid loquator in me Dominus: “Escutarei o que o nosso Senhor há de falar dentro de mim” [Sl. LXXXV, 8].

Não há dúvida de que, se deixarmos tudo de lado e o atendermos, não nos deixará de inspirar, falando-nos por dentro como mais convenha para nosso grande alívio espiritual, para fortalecimento e proveito da nossa alma. Por conseguinte, aprendamos com Marta que toda a nossa ocupação exterior deve pertencer a Ele, alegrando-o por amor dEle a Ele e aos seus companheiros — isto é, as pessoas pobres, cada uma das quais Ele aceita não só como um discípulo seu, mas como se fosse Ele mesmo. Pois Ele mesmo disse: Quamdiu fecistis uni de hiis fratribus meis minimis, mihi fecistis: “O que fizestes a algum destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” [Mt. XXV, 40]. E também com Maria sentemo-nos em contemplação piedosa, e atendamos bem ao que o nosso Salvador, sendo agora nosso hóspede, nos dirá interiormente.

Temos agora um tempo de oração muito especial, quando Aquele que nos fez e nos resgatou, Aquele a quem ofendemos, Aquele que nos julgará, Aquele que nos condenará ou salvará, se fez com imenso amor nosso convidado e está pessoalmente presente dentro de nós, e com nenhum outro propósito senão que lhe supliquemos o seu perdão e assim possa salvar-nos. Não percamos, pois, o nosso tempo nem permitamos que esta ocasião passe sem mais nem menos, pois não sabemos se voltará a repetir-se ou não.

Esforcemo-nos para que fique conosco e digamos com os discípulos de Emaús: Mane nobiscum, Domine: “Fica conosco, Senhor” [Lc. XXIV, 29], e estaremos certos de que Ele não se irá embora a não ser que o deixemos ir. Não façamos como a gente de Gerasa, que lhe pediu que fosse embora das suas terras, pois haviam perdido uma vara de porcos por culpa dEle, para salvar um homem do qual havia expulsado uma legião de demônios que logo a seguir destruíram os porcos. Não façamos algo parecido, expulsando Deus por um amor desordenado aos lucros temporais ou por desejos sujos, ao invés de abandonar tudo nEle para proveito das nossas almas; se isto acontecer, podemos ter a certeza de que Deus não ficará conosco, uma vez que o teremos expulsado tão rudemente.

E não falamos tampouco o que fizeram as turvas de Jerusalém, que no Domingo de Ramos receberam Cristo esplendidamente e com grande fervor em devota procissão; e na Sexta-feira seguinte o entregaram a uma vergonhosa Paixão. No domingo, gritavam: Bendictus qui venit in nomine Domine: “Bendito o que vem em nome do Senhor”; e na sexta clamavam: Non hunc, sed Barabbam: “Não queremos este, mas Barrabás”. No domingo, gritavam: Osanna inexcelsis; na sexta, Tolle, tolle, crucifige eum [Hosana nas alturas e Tira-o, tira-o, crucifica-o; Mt. XXI, 9 e 23; Lc. XIII, 35; Jo. XIX, 25].

Certamente nunca o recebemos tão bem e tão devotamente como na Páscoa; se depois caímos num estado miserável, vivendo num pecado que expulsa o nosso Senhor das nossas almas, provamos que o tínhamos recebido como os judeus. Pois fazemos tudo o que podemos para tornar a crucificar Cristo: Iterum, diz São Paulo, crucifigentes filium Dei [Crucificaram novamente o Filho de Deus (Hb. VI, 6)].

Bons leitores cristãos, recebamos o nosso Senhor como o bom publicano Zaqueu, que, desejando ver Cristo e por ser baixo de estatura, subiu a uma árvore. Nosso Senhor, vendo a sua devoção, chamou-o e disse-lhe: “Zaqueu, desce porque hoje devo hospedar-me contigo”. E ele desceu com toda a pressa e recebeu-o com muita alegria na sua casa. Mas não o recebeu somente com a alegria de uma emoção superficial e passageira, antes propriamente e com boa intenção. A partir desse momento, reembolsou os que tinha defraudado e, generosamente, por cada centavo devolveu-lhes quatro. E, mais ainda, imediatamente, sem demora, ofereceu-se a dar metade dos seus bens aos pobres. Por isso, não disse: “Ouvirás que vou dar...”, mas disse: Ecce dimidium bonorum meorum do pauperibus: Olha, Senhor, dou a metade dos meus bens aos pobres” [Lc. XIX, 8].

Com essa jovialidade, com essa presteza de espírito, com essa alegria e gozo espirituais com que esse homem recebeu o Senhor na sua casa, dê-nos o nosso Senhor a graça de receber o seu bendito Corpo e Sangue, a sua santa Alma, junto com a sua Divindade todo-poderosa, nos nossos corpos e nas nossas almas, para que o fruto das nossas boas obras dê testemunho dignamente, e com uma fé tão plena e um propósito tão firme de viver bem, como estamos obrigados a fazer.

Então Deus pronunciará a sua graciosa sentença e dirá à nossa alma como disse a Zaqueu: Hodie salus facta est huic domui: “Hoje foi dia de bem-estar e salvação para esta casa” [Lc. XIX, 9]. Que a santíssima pessoa de Cristo que recebemos realmente no Santo Sacramento, pelos méritos da sua amarga Paixão (da qual instituiu o seu Corpo bendito como memorial), se digne conceder-nos a todos nós essa salvação.



São Thomas More, “A Sós, com Deus – Escritos da prisão”. São Paulo: Quadrante, 2002, p. 132-146.

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