Ordenação sacerdotal de Dom Tomás de Aquino

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas - Parte I

Professor Carlos Ancêde Nougué

Proêmio


O sedevacantismo inclui-se numa espécie do que chamo, genericamente, de “pensamento mágico”, a saber, aquela em que se dá qualquer inversão entre mente e realidade, entre causa e efeito, entre antecedente e conseqüente, entre premissa e conclusão. Explique-se.


O pensamento mágico típico crê encontrar na realidade relações causais onde de fato não as há, porque, diferentemente da sã razão natural, não distingue concomitância de causalidade e acaba por tomar aquela por esta. Por exemplo: alguém pode crer que o número 11 dá sorte porque ganhou algum torneio esportivo usando uma camisa de número 11. Procurará, a partir de então, fazer girar toda a sua vida em torno do número 11, e de fato, a cada passo, encontrará entre o número 11 e a sorte uma relação de causalidade, enquanto, em verdade, tudo não havia passado de uma relação de concomitância: usar a camisa 11 e ganhar o torneio não tinham sido senão fatos simultâneos, sem nenhuma determinação mútua. O fato, no entanto, é que a algo que é apenas concomitante o supersticioso atribui caráter causal.

São muitos os produtos do pensamento mágico típico, entre os quais a astrologia.

Mas, se, mais amplamente, se considera mágico todo aquele pensamento que vê relação causal onde de fato não a há, então nem todo o pensamento mágico se resume a superstição: quando, por exemplo, Engels dizia, na esteira de Darwin, que o que torna o homem homem é o fazer instrumentos, tal maneira de raciocinar e concluir é ainda pensamento mágico sem, todavia, ser supersticioso: aqui não se confunde concomitância com causa, mas resultância, conseqüência, efeito com causa. De fato, qual é a causa e qual o efeito: o mamífero é mamífero porque mama, ou mama porque é mamífero? O homem é homem porque pensa, ou pensa porque é homem? Confiamos em que os motoristas não avançarão o sinal porque atravessamos a rua, ou atravessamos a rua porque confiamos em que os motoristas não avançarão o sinal? Ora, é claro que o mamar é efeito da causa ser mamífero, assim como o pensar é efeito da causa ser homem, e assim como o atravessar a rua é efeito da causa confiar. Logo, do mesmo modo, fazer instrumentos é efeito da causa ser homem.[1]


Podem-se multiplicar os tipos de pensamento mágico neste segundo sentido, e entre eles ressalta o idealismo, que por sua vez se subdivide em diversos subtipos: desde aquele segundo o qual a realidade extra mentis não é inteligível por e em si para o homem, que não a pode “conhecer” senão por categorias mentais apriorísticas (kantismo); até aquele, no extremo da psicopatologia do pensamento moderno, segundo o qual a realidade extra mentis é precisamente “produzida” pelo próprio intelecto humano que a pensa (como se se tratasse do Intelecto divino...). Nesse sentido, Platão não era idealista: conquanto patentemente se equivocasse ao dar existência substancial às idéias, sua filosofia, porém, se funda em algo que ele considerava real ou extramental (aquelas mesmas idéias substancializadas). Se porém não era idealista por seu ponto de partida, o era, sim, por seu ponto de chegada: com efeito, como diz o Padre Álvaro Calderón, “as idéias platônicas existem apenas na mente, porque não têm outro fundamento além do conceito analógico comum que a razão abstrai sob certa confusão de todos os modos concretos em que una essência se dá realmente”.[2]

De modo análogo, o que chamo “reconstrução ideal da história” não tem como ponto de partida o julgar a história “cognoscível” para o homem apenas por categorias mentais apriorísticas, nem, muito menos, o julgá-la produzida pela própria mente humana; mas, assim como o platonismo, sem ser originalmente idealista, acaba por incorrer num idealismo de chegada, assim também sucede com esta maneira de tratar a história, na qual se inclui o sedevacantismo; e que, como já disse, é um tipo de pensamento mágico no sentido aqui considerado. Vejamo-lo mais de perto.

Diz Rubén C. Bouchet em El espíritu del capitalismo que, quando o homem, “impelido pela soberba, se divorcia das evidências imediatas que o atam à realidade [...], inicia o caminho de uma separação que se irá tornando cada dia mais abismal e completa. A realidade toda acaba por ser absorvida pelo pensamento, e em seu lugar [ou seja, em lugar da realidade] cresce com a força de um vício o gosto pela quimera”.[3] Em nossos termos, à força de tanto inverter causa e efeito ou antecedente e conseqüente, este tipo de pensamento mágico acaba por desfazer-se de toda e qualquer causa, ainda que equivocada ou ilusória, para ter por referência única a própria vontade. É essa a gênese das ideologias, cujos objetivos são quimeras nos dois sentidos principais da palavra: a) puros produtos da imaginação soberba e b) verdadeiras monstruosidades — como, com efeito, duplamente o são o comunismo e o liberalismo.

Ora, tanto o comunismo como o liberalismo reconstroem idealmente a história, reduzindo-a a um ou poucos elementos centrais. Com efeito, para o liberal a história se divide em dois períodos principais: a.L. e d.L, ou seja, antes da Liberdade e depois da Liberdade (propiciada pela revolução francesa e similares), assim como para o comunista a história se divide em três períodos principais (com algum sabor de ciclicidade): a sociedade sem classes primitiva, a sociedade de classes e a futura sociedade sem classes, que representará o fim da história e a instauração do paraíso terrestre. Como se vê, no primeiro caso a “luta pela liberdade” é o eixo em torno do qual a história sempre girou, gira e girará, enquanto no segundo a “luta de classes” é o motor que sempre impeliu e impele a história na direção inexorável de uma enteléquia imanente.[4]

Mas a pura “reconstrução ideal da história” tem gênese diferente. Seu ponto de partida é uma conclusão que deriva de fato de uma premissa; mas uma premissa tênue: trata-se antes de uma espécie de impressão, resultante do choque de um ou mais dados da realidade contra determinadas convicções demasiado simplistas. Como porém tal premissa, por tênue, não pode satisfazer nem sequer aquele mesmo que a formula (para não falar dos demais), ele sai em busca de uma ou mais premissas mais sólidas para aquela conclusão, digamos, já pré-tirada. Ora, como toda essa operação é já, de per si, redutora da realidade, sucede que o formulador de tal conclusão pré-tirada não buscará em sua investigação mergulhar na complexidade do real, mas se aferrará como um náufrago à tábua de salvação de uma ou poucas coisas que lhe parecerão ser o centro, o eixo mesmo da realidade, ou seja, que lhe parecerão ser as sólidas premissas que buscava.[5]

As diversas correntes do sedevacantismo afirmam a vacância (ao menos formal) da Sede de Pedro (pelo menos) desde o Concílio Vaticano II, e o fazem a partir de uma redução típica deste tipo de pensamento mágico que é a “reconstrução ideal da história”. Com efeito, para o sedevacantismo a Sede de Pedro está vacante por defeito de autoridade, porque não pode ser cabeça da Igreja aquele que, por heresia, nem sequer pertence a seu corpo. Sem dúvida, tal conclusão não brota do nada; segue-se de uma premissa, ou melhor, da forte impressão causada no espírito de fiéis católicos pelas novidades introduzidas a partir do Concílio Vaticano II, novidades que se chocam frontalmente com o ensinado pelo magistério infalível anterior. Sucede porém que tal premissa é tênue, porque, como veremos, para servir àquela conclusão seria preciso provar, antes, entre outras coisas, que qualquer heresia implica ipso facto a perda da suprema autoridade da Igreja. Ora, como também veremos, os defensores do sedevacantismo não respondemdiretamente a esta nem a outras objeções essenciais sem cuja solução rui a sua conclusão, mas, aferrados a esta, buscam-lhe outras premissas, mais “sólidas”.

Três, porém, são grosso modo as correntes sedevacantistas, e o são precisamente segundo as diversas premissas mais “sólidas” que encontram para a sua conclusão. E, se é verdade que para resolver qualquer questão é preciso proceder e expor ordenadamente, ainda mais o será aqui se se considera tal diversidade. Devemos proceder, portanto, ao estudo exaustivo daquelas premissas (para verificar se de fato não servem convenientemente àquela conclusão) partindo da corrente sedevacantista que aduz as premissas aparentemente mais consistentes (e que, como veremos, estão em verdade pressupostas nas teses de todas as outras correntes), para chegar, por fim, à que esgrime as mais frágeis. Concretamente, partir-se-á da tese brandida por Pacheco Salles em A Figura deste Mundo[6]para chegar à dos que se agarram sobretudo à Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV; passando, naturalmente, pela chamada Tese de Cassiciacum, segundo a qual desde 1965 os Papas já não o são formaliter, mas apenasmaterialiter. Como se verá, esta ordem obedece verdadeiramente a uma ordem decrescente de complexidade, a qual termina num efetivo e manifesto simplismo.


Duas últimas palavras.
a) Entre as razões por que me lanço a escrever este breve estudo sobre o sedevacantismo como “reconstrução ideal da história”, está a preocupação com a simpatia que ele vem despertando em certas faixas de católicos, em especial jovens, que com toda a razão se indignam diante dos escândalos doutrinais provenientes da Hierarquia conciliar, sem atinar porém para quão pernicioso é o sedevacantismo em si e por seus efeitos deletérios: afastamento dos sacramentos, perda da fé, etc. É preciso tentar fazê-los “compreender que, entre a vertigem do sedevacantismo e a perplexidade da obediência, há lugar para a lúcida e católica resistência que D. Lefebvre nos ensinou”.[7]
b) Tentar-se-á descrever da forma mais sintética possível as três opiniões sedevacantistas, sem subtrair-lhes, porém, nenhuma nota essencial; ao contrário, quanto mais fiel e estimulantemente se expuserem, de modo que sejam capazes de impressionar verdadeiramente o leitor, tanto melhor, porque assim mais precisão e robustez teológica terá de ter a sua refutação.[8] É esse, aliás, guardadas as devidas proporções, o princípio mesmo da quaestio disputata tomista, que não deixa de ser a própria técnica de discussão aristotélica, mas altamente depurada, adequadamente simplificada e perfeitamente adaptada à teologia.

Notas:
[1] Hão de argumentar: mas alguns macacos, como os chimpanzés, também fazem instrumentos... Sim, mas não se segue daí que sejam chimpanzés porque fazem instrumentos; antes fazem instrumentos porque são chimpanzés. Então têm os chimpanzés e os homens isto em comum: fazer intrumentos? Sim, senhor, e que tal não seja pedra de escândalo: temos os humanos muitas outras coisas em comum com os chimpanzés: temos corpo, e eles também; temos sangue, e eles também; temos olhos, e eles também; gritamos de dor, e eles também; etc. Aliás, também as aves têm corpo, sangue, olhos, e muitas gritam, enquanto outras também fazem instrumentos e até constroem belas casas, ou ao menos mais belas que muitos edifícios modernos... Isso para não dizer que temos algo muito importante em comum com as abelhas e as formigas: o sermos sociais...
[2] El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II (ainda não publicado em livro). E complementa em nota o teólogo: “... a noção análoga de ‘conhecimento’ não é o conhecimento de Deus, nem o da razão, nem o da vista, nem nenhum conhecimento”.
[3] Buenos Aires/Santander, Nueva Hispanidad Académica, 2008, pp. 371-372.
[4] Mas argüir-se-á: os católicos também não reduzem a realidade a uma só coisa, ou seja, Deus? Não e sim segundo o aspecto por que se olhe: não enquanto para nós Deus é absoluta transcendência e não uma imanência ao modo panteísta; mas sim enquanto Ele é o Ser por si mesmo subsistente, a Causa Primeira, a Causa das Causas, que enquanto tal está presente em todos os seus efeitos, isto é, em todos os entes, que não têm ser senão por participação do Ser.
[5] Como é evidente, o sedevacantismo absolutamente não se confunde com o liberalismo nem com o comunismo, embora certas seitas sedevacantistas claramente cismáticas, como o “Palmar de Tróia” e a “Igreja Latina de Toulouse”, pareçam ter também caráter messiânico, e pois quimérico e ideológico.
[6] Não digo que Pacheco Salles sustente o sedevacantismo em A Figura deste Mundo (não publicado em livro). Mas digo que é precisamente das teses defendidas nessa obra que se valem muitos sedevacantistas isolados. Além disso, sirva mutatis mutandis para este breve estudo sobre o sedevacantismo o que diz o Padre Álvaro Calderón da quaestio disputata, que “é um combate de argumentos e não de pessoas”, razão por que “retomamos cada objeção por conta própria, tentando dar-lhes a forma mais eficaz que a brevidade permite. É assim que mais de uma vez o argumento se volta contra a intenção do autor em que se inspira” (A Candeia Debaixo do Alqueire, Rio de Janeiro, Edições Mosteiro da Santa Cruz/Sétimo Selo, 2009, p. 19).
[7] Padre Álvaro Calderón, ibid., p. 342.
[8] “Os que querem investigar com êxito devem começar por suscitar bem as dificuldades, pois o êxito posterior consiste na solução das dúvidas anteriores, e não é possível soltar se se desconhece a atadura” (Aristóteles, Metafísica, livro I, c. 1).

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