Autor: Prof. Carlos Ancêde Nougué
Primeira parte
A tese derivada do livro A Figura deste Mundo,
de Pacheco Salles
Sem dúvida, seu ponto de partida é o mesmo de todos os tipos de sedevacantismo, a saber: não pode ser cabeça da Igreja aquele que, por heresia, nem sequer pertence a seu corpo; ora, a partir do Concílio Vaticano II todos os papas se mostraram heréticos; logo, desde então a Sede Romana está vacante por defeito de autoridade.
Como já se disse, tal raciocínio não brota do nada; segue-se da forte impressão causada no espírito de fiéis católicos pelas novidades introduzidas a partir do Concílio Vaticano II, novidades que se chocam de modo evidente com o ensinado, ininterruptamente, pela totalidade do magistério anterior. Sucede porém que ambas as premissas deste raciocínio são tênues: a primeira porque seria preciso verificar, antes de tudo, se qualquer classe de heresia impede ipso facto o ser cabeça da Igreja (o que se verá ao estudarmos o segundo tipo de sedevacantismo, o da Tese de Cassiciacum); a segunda porque (como também se verá então) implica um argumento quia de todo ilícito para o caso em questão.
Em outras palavras, entre estas premissas e aquela conclusão há saltos lógicos que tornam incerto o conjunto do raciocínio. Ora, ainda que sabedores disso, os propugnadores deste tipo de sedevacantismo não buscaram, teológica nem prudentemente, investigar com profundidade suas premissas e, portanto, a possibilidade efetiva de delas seguir-se sua conclusão, mas aferraram-se a esta, e saíram em busca de outras premissas, mais sólidas, para ela. Na prática, trata-se de uma conclusão apriorística, ou melhor, da inversão entre conclusão e premissas que caracteriza a classe de pensamento que nos ocupa aqui, a que incorre no que chamamos de “reconstrução ideal da história”.
Descreva-se pois agora, fidedignamente, o argumento central de Pacheco Salles em A Figura deste Mundo:
1) A fé teologal é um testemunho da verdade divina que Deus mesmo nos infunde na inteligência e no coração, para que possamos, infalivelmente, distinguir a verdade do erro ou da heresia, e a graça santificante é uma criação nova, um renascimento do homem mediante a participação da vida divina.
2) A fé teologal e a graça santificante são a essência mesma do Cristianismo, e delas depende tudo o mais. Não obstante, desde o fim da civilização cristã (leia-se: século XIII), ambas essas verdades se foram deslocando, nas almas católicas, de sua posição central, para ser pouco a pouco substituídas pelo culto do dever, pela prática dos mandamentos, pela observância escrupulosa dos preceitos morais e pela obediência cega às autoridades, como se tudo isso não dependesse precisamente da graça santificante e da fé teologal.
3) Passou-se progressivamente, com isso, a ver a graça como mero auxílio à boa conduta e ao combate aos vícios e paixões, e a fé, como algo decorrente da obediência. Ora, tudo isso não só lembra mas tem estreito vínculo com a moral kantiana e seu imperativo categórico, diretamente decorrentes do protestantismo vitorioso em boa parte de uma Europa fraturada e minada pela heresia.
4) Pois bem, quanto à relação entre o fiel e a autoridade eclesiástica, também se deu uma inversão, conseqüente daquela: em vez da fé considerada como a razão formal da aceitação do ensino da Igreja, temos agora a autoridade do magistério eclesiástico considerada como a razão formal da fé. Radical inversão da realidade, pela qual se reduz a fé teologal a mera fé humana, que até pode ter a verdade revelada por objeto, mas evidentemente não é a fé sobrenatural — a única que salva.
5) Com efeito, segundo Santo Tomás de Aquino (cf. De Veritate, q. 14), um hábito, para tornar-se virtude, deve produzir sempre atos bons, porque toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. É o que se dá com a potência intelectiva, cujo objetivo é a verdade: qualquer ato seu será bom se manifestar a verdade, ou, em outras palavras, só tornarão virtuosa a inteligência humana os atos seus que alcançarem infalivelmente a verdade.
6) Mas como é possível existir, em nossa inteligência, a capacidade de conhecer com infalibilidade as verdades divinas, que sabidamente estão além da capacidade até de homens como Platão e Aristóteles? Sempre de acordo com o Doutor Comum, é a adesão interior ou íntima às verdades divinas, infundida sobrenaturalmente na inteligência, o que as torna discerníveis aos homens (e também aos anjos). Mais que isso, porém: sem tal adesão não se ordenaria o homem a seu fim sobrenatural. Por isso, pela ciência infusa, que é um dom de Deus, o cristão está provido de uma prerrogativa única: a inerrância em matéria de fé, no que diz respeito a tudo quanto necessita para a sua salvação.
7) Mas como, precisamente, é possível aos cristãos conhecer e confessar de modo infalível todos os artigos de fé e suas incontáveis sutilezas? Ora, os autênticos fiéis lutam por sua fé, razão por que Deus não os deixa cair em erro (“... si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium”, diz Santo Tomás). Qualquer cristão recebe de Deus um verdadeiroinstinto da fé, que o faz evitar ou rejeitar os erros com respeito à verdade divina, ainda que se trate dos artigos e sutilezas da fé ensinados pela Igreja.
8) Isso porém tem uma pré-condição: o cristão pode professar todos esses artigos e suas sutilezas porque pode professar o primeiro, o supremo de tais artigos – Deus mesmo –, do qual decorrem e para o qual convergem todos os demais. Ora, as verdades em que o cristão deve crer, por ultrapassarem nossa capacidade natural de conhecimento, são-nos como que reveladas por Deus. É verdade que tais verdades nos são ordinariamente propostas pela pregação dos homens da Igreja, e que comumente tal pregação é a condição para a crença nelas. Mas dizer condição não quer dizer suficiência — ela não basta para que tenhamos fé, e isso porque com respeito já àquele primeiro e fundamental ato de fé (crer em Deus) ela não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: não tem ela autoridade para tal, ainda que confirmada por milagres. O ato primordial de fé é posto, é infundido por Deus mesmo, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades.
9) Tudo isso, contudo, como já dito, foi sendo esquecido desde o século XIII. Deixando-se de lado a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da verdade que salva, acabou-se por erigir, de modo tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos. Já sem poderem suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, quiseram um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor.
10) Foi desse modo que a luta pela fé foi absorvida e neutralizada numa obediência beata, cega e incondicional ao rei terreno. Tal obediência implica um axioma imoral: o de que a ordem do superior livra o subordinado de qualquer responsabilidade própria. Para comprová-lo, vejamos algo do que diz o Doutor Comum acerca da obediência (cf. Suma Teológica, II-II, q. 10). Antes de tudo, a própria obediência a Deus não é a maior das virtudes. Ela vem abaixo das virtudes teologais (fé, esperança e caridade), e vem abaixo delas porque, ainda se tratando de obediência a Deus, que implica o desapego dos bens criados e o desprezo da vontade própria, não é senão um meio para aquela adesão. Em verdade, as virtudes teologais sobrepujam todas as virtudes morais, porque concernem diretamente a Deus, enquanto estas concernem apenas ao meio mais adequado para nosso fim último, que é Deus mesmo. E, se é verdade que entre as virtudes morais a obediência ressalta, justamente por implicar o desprezo do maior dos bens (a vontade própria), isso em nada muda o fato de que a obediência é uma virtude subalterna, que depende da mesma subordinação às virtudes mais altas para que ela própria seja virtude. Faltando essa subordinação, deixará a obediência de ser virtude, e se mudará em vício.
11) Ora, ao fim desse processo nada mais natural que a heresia tomasse de assalto a própria Sé de Pedro, o que de fato sucedeu já com João XXII, mas especialmente a partir do Concílio Vaticano II. Com efeito, com uma cristandade inerme, ou seja, destituída do sensus fidei, que é a razão formal da autoridade e pois da legitimidade da Sede de Pedro, esta não poderia senão acabar por ser ocupada pelo inimigo – e a partir desse momento estará propriamente vacante.[1]
* * *
Como podemos ver pela exposição, o tipo de sedevacantismo que agora se estuda alcançou as duas seguintes premissas:
● A fé teologal é infundida por Deus mesmo na inteligência e no coração de cada fiel, para que ele possa, infalivelmente, distinguir a verdade do erro ou da heresia, ou seja: cada fiel é dotado pelo Espírito Santo de um infalível sensus fidei. Por seu lado, a pregação da hierarquia da Igreja não tem autoridade sobre os atos de fé dos fiéis, podendo ter apenas caráter de persuasão com relação a estes últimos.
● Mas desde o fim da civilização cristã (século XIII) a fé teologal (que junto com a graça santificante constitui a essência mesma do cristianismo) foi-se deslocando nas almas católicas de sua posição central, para ser pouco a pouco substituída por um culto do dever de corte kantiano e por uma obediência cega à autoridade papal.
Donde a conclusão (que, porém, como já vimos, estava já estabelecida):
● Não é de estranhar, pois, que a heresia tenha ocupado a Sé de Pedro sem que a grande maioria dos católicos resistisse a ela, maioria que, muito pelo contrário, seguiu e segue obedecendo a papas heréticos. Estes, porém, justamente por heréticos, não são verdadeiros papas, e a Sede romana já desde algum tempo está vacante.
Refutação da tese
Notas prévias à refutação
- Como convém, começaremos por refutar a premissa maior da tese adversária, a do sensus fidei de que é dotado cada fiel. Diga-se desde já: a noção de sensus fidei sustentada por Pacheco Salles é uma perversão da verdadeira doutrina acerca dele, perversão que, mutatis mutantis, a forma de sedevacantismo que agora estudamos compartilha por um lado com o protestantismo e por outro com o modernismo. Já o veremos.
- A premissa menor desta tese constitui propriamente a “reconstrução ideal da história” que nos ocupa neste artigo, e será refutada em seguida à refutação daquela noção equivocada de sensus fidei.
- A conclusão (a da Sede vacante), porém, só será refutada ao final do exame de todas as formas de sedevacantismo, porque, com efeito, diz respeito a todas elas. Mas até lá já estará demonstrada a fragilidade dos alicerces em que todas se fundam.
- Após a refutação das duas premissas desta tese adversária, responder-se-á particularmente a cada item numerado de sua exposição.
I) Refutação da primeira idéia básica da tese adversária
Antes de tudo, atente bem o leitor para que uma aparente contradição da tese adversária não o é efetivamente. Com efeito, se Deus mesmo dá aos fiéis, a cada fiel, uma fé ou sensus fidei infalível e por isso mesmo capaz de distinguir infalivelmente a verdade do erro ou da heresia, como é possível então que a própria fé se tenha deslocado progressivamente na alma dos fiéis a ponto de ser pouco a pouco substituída por uma noção de dever de corte kantiano e por uma obediência tão cega, que os torna incapazes de resistir até a papas heréticos? A isso, lembremo-nos, responde o adversário da seguinte maneira: “Os autênticos fiéislutam por sua fé, razão por que Deus não os deixa cair em erro (‘... si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium’, diz Santo Tomás). Mas, deixando de lado a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da verdade que salva, a maioria dos católicos acabou por erigir, de modo tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao Papa como sua obrigação primeira. Já sem poder suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, essa maioria quis um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor”. Para saber, porém, se de algum modo a tese do adversário procede, é preciso saber não só se a fé dada por Deus a cada fiel é efetivamente infalível, e não só se efetivamente a maioria dos católicos a rejeitou e por isso deixou de ser autenticamente católica, mas também se cada um dos fiéis pode efetivamente ter certeza de que o que julga ser fé sobrenatural dada por Deus a ele o é de fato. Sim, porque não é verdade que cada protestante sincero crê sinceramente que a sua fé individual e interior é verdadeira fé sobrenatural infusa?
Em verdade, como já antecipado, estamos diante de uma das formas de perversão da correta doutrina do sensus fidei. Com efeito, na Suma Teológica, II-II, q. 1, a.3, pergunta-se Santo Tomás se é possível haver ato de fé de um objeto falso, como se daria se um menino fizesse um ato de fé de uma proposição falsa induzido, por exemplo, por um sacerdote formado num mau seminário. Parece que sim, porque em princípio o menino está predisposto a crer em tudo quanto lhe diga o sacerdote enquanto representante da Igreja, e porque não tem capacidade para distinguir o verdadeiro do falso em tudo quanto lhe diga o sacerdote. Mas não é assim, porque o objeto formal e próprio da virtude sobrenatural da fé é a verdade divinamente revelada, e em nada divinamente revelado pode haver nem sombra de erro. “Assim como a vista”, diz o Padre Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, “não pode ver senão a cor por meio da luz; assim como a inteligência não pode entender a verdade senão em razão de sua evidência; assim tampouco a fé sobrenatural pode crer senão na verdade formalmente revelada.” Ora, assim como aquele mesmo menino também poderia ser induzido por um professor de ciências a afirmar como verdadeira uma demonstração falaz, e assim como tal afirmação não seria induzida pela evidência do raciocínio (porque o menino por ser criança seria incapaz de tal) e não seria, portanto, um ato da virtude intelectual da ciência, assim também, analogamente, o menino pode assentir à falsidade proposta pelo sacerdote, e tal assentimento será, sim, um ato de fé, mas não de fé sobrenatural, que só se pode dar com respeito a verdades reveladas por Deus mesmo. Será um ato de fé meramente humano.
Até aqui, portanto, as palavras do Aquinate parecem dar inteira razão ao nosso sedevacantista, porque, com efeito, se lê na exposição da tese adversária feita no artigo anterior que, “segundo Santo Tomás de Aquino (cf. De Veritate, q. 14), um hábito, para tornar-se virtude, deve produzir sempre atos bons, porque toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. É o que se dá com a potência intelectiva, cujo objetivo é a verdade: qualquer ato seu será bom se manifestar a verdade, ou, em outras palavras, só tornarão virtuosa a inteligência humana os atos seus que alcançarem infalivelmente a verdade”. Sucede todavia que, como sugere o próprio exemplo do menino com o sacerdote, nesta vida o cristão nunca poderá discernir com certeza se um ato seu é natural ou sobrenatural, e isso porque, como lembra ainda o Padre Calderón (ibid.), “o único hábito intelectual capaz de conhecer o sobrenatural por essência é o lumen gloriae dos bem-aventurados”. Sim, porque para cada ato sobrenatural de uma virtude infusa pode dar-se um ato semelhante produzido por uma simples disposição natural, e, conquanto se possa, se se for dotado de boa capacidade de discernimento, “distinguir com certa probabilidade os atos que vêm da graça, não é possível fazê-lo com toda a certeza” (idem; grifo nosso). Para comprová-lo, leia-se De Veritate, q. 10, a.10, onde o Doutor Comum se pergunta se alguém pode saber com certeza se tem a virtude sobrenatural infusa da caridade, e, como propõe ainda o Padre Calderón, estenda-se o que se responde ali a todas as demais virtudes infusas: com efeito, ninguém pode ter certeza de que tem nenhuma delas (ainda que, se for dotado daquela boa capacidade de discernimento, possa até distinguir sua presença com certo grau de probabilidade).
Se assim é, contudo, como se pode dizer que o católico é obrigado a fazer firme profissão externa de sua fé? Sim, porque parece absurda tal exigência se ele não pode discernir com certeza aquilo em que internamente crê, ou seja, se se trata de assentimento sobrenatural ou meramente natural. De fato, uma criança nascida “no protestantismo pode ter fé divina por graça de Deus e crer sobrenaturalmente em muitas verdades reveladas, mas nunca poderia moralmente assegurar a ninguém que aquilo em que crê é verdade de fé” (Padre Calderón, ibid.). Mas se assim é, repita-se, como então pode o fiel fazer uma profissão de fé externa certa? Ora, com um critério externo também certo, ou seja, sem nenhuma possibilidade de erro: o Magistério infalível da Igreja.
Assim, ao contrário do que diz o nosso sedevacantista de primeiro tipo, não é um suposto “instinto da fé” ou sensus fidei dado por Deus mesmo a cada fiel o que o faz professar de modo infalível as verdades divinas.
Mas, então, há de perguntar o nosso sedevacantista, de nada vale ou de nada serve a virtude infusa da fé? É claro que vale: a fé, sobretudo uma fé robusta, acompanhada de certos dons do Espírito Santo (o da sabedoria, o do intelecto e o da ciência), é capaz de compreender clara e firmemente muitas verdades. Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata. Mas o católico, incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé “se o confirmar”, como diz o Padre Calderón (ibid.), “e no grau em que o confirmar o Magistério da Igreja”.
Mas não é verdade de fé que o sensus fidei é infalível? Sim, o é, mas não como entende essa noção o nosso sedevacantista. Antes de tudo, ao contrário do que afirmam tanto os protestantes como os sedevacantistas, o sensus fidei não é um “instinto individual da fé dado por Deus a cada fiel”. “Sensus fidei do povo cristão” é outra maneira de dizer “consensus fidelium in doctrinam fidei”, e refere-se ao fato de que a “universitas fidelium in credendo falli nequit”, ou seja, quando a universalidade ou totalidade “moral” dos fiéis católicos professa uma verdade como sendo de fé, não pode enganar-se. Isto, sim, “é critério infalível da divina Tradição (cf. a Tese XII do Cardeal Franzelin, em Tractatus de divina Traditione, edit. 3ª, Romae 1882). Isto é verdade de fé católica” (Padre Calderón, ibid.).
Ao contrário porém do que, como veremos, diz o modernismo, “o sujeito deste ato (‘id quod’ agit) é a Igreja universal, sem distinção entre clérigos e leigos; e o princípio pelo qual se obra (‘id quo’ agitur) é a fé sobrenatural. Mas a propriedade de infalibilidade deste ato não vem exclusiva, nem principal, nem formalmente da fé do povo cristão, e sim do Magistério da Igreja, cujo sujeito não é a Igreja universal, e sim o Papa e os bispos, e cujo princípio não é a fé, e sim o carisma da infalível verdade. Daí que a infalibilidade in credendo da Igreja universal se reduza própria e estritamente à infalibilidade in docendo da Hierarquia eclesiástica” (Padre Calderón, ibid.), desde que, obviamente, como também veremos na hora certa, a Hierarquia não renuncie a esta infalibilidade. Pois bem, como diz ainda o Padre Calderón, embora ainda não se possa dizer que esta tese seja dogma de fé, “ela entretanto é doutrina católica certa” (idem).[2]
Aprofundemos a questão, para que não reste nenhuma dúvida a seu respeito. De fato, como dizia Santo Tomás (Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 3: “Utrum fidei possit subesse falsum”), a virtude sobrenatural da fé, infundida por Deus mesmo na alma de cada fiel, é infalível em seu ato interno. Sucede porém que este ato não serve como critério infalível da Tradição, porque, nesta vida, ele é essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe. Para o povo fiel saber com toda a certeza em que deve crer, as verdades de fé têm de ser propostas por um mestre infalível em seu ato externo, ou seja, por esse mestre enquanto instrumento fidelíssimo de Deus. Foram mestres assim “os profetas no Antigo Testamento, e o próprio Filho de Deus feito homem no Novo (Heb., I, 1), o Qual prolonga seu magistério por meio do Sacerdócio hierárquico” (Padre Calderón, ibid.).
Diz contudo o nosso sedevacantista que “as verdades em que o cristão deve crer, por ultrapassarem nossa capacidade natural de conhecimento, são-nos como que reveladas por Deus”. Ora, se é verdade que esse “como que” é demasiado ambíguo para permitir afirmar com certeza o que quer dizer seu autor, não se pode porém evitar ver na frase algo que tangencia perigosamente um “angelismo” à Descartes ou à Maritain, ou seja, o atribuir aos homens coisas que não convêm senão aos anjos. Naturalmente, de potentia absoluta “Deus poderia ter proposto as verdades de fé [aos homens] por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como se deu de fato com os anjos” (Padre Calderón, ibid.). Com efeito, Deus formou no intelecto dos anjos, sobrenaturalmente e ao modo de revelação interior, certas espécies mediante as quais eles pudessem crer em diversas verdades divinas.Atente-se, porém, para duas coisas. Primeira, nem a própria natureza angélica é capaz de “conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus” (Padre Calderón, ibid.) procedeu àquela como revelação interior. Segundo, pelo fato de a natureza do homem ser política ou social, e sua inteligência ser discursiva, e não intuitiva, não lhe convinha tal modo de revelação: como dizia Santo Tomás, em virtude de a natureza não ser senão “a razão de certa arte divina, interior às coisas mesmas, pela qual elas próprias se movem para determinado fim”,[3] ou seja, em virtude de Deus mesmo ter infundido em cada ente, como razão seminal,[4] a natureza que lhe é própria, Ele não a violenta. Ora, é da natureza própria do homem chegar à verdade mediante “o ensinamento do magistério oral de suas autoridades naturais” (idem), e não é próprio do intelecto humano intuir nenhumas verdades, incluídas, natural e especialmente, as verdades divinas. “Daí que Deus, que tudo faz com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma divina autoridade” (idem).
Por isso, se de fato o fiel é levado a assentir ao Magistério da Igreja pela virtude infusa e interna da fé, a certeza da profissão de fé, porém, “depende formalmente dos critérios externos pelos quais pode reconhecer sua proposição por parte da Hierarquia eclesiástica. Se o fiel julga entender tal ou qual verdade na meditação dos mistérios cristãos, não pode estar certo do que crê senão na medida em que lho assegure o Magistério” (Padre Calderón, ibid.); e, ao contrário do que afirmam os protestantes e do que como que afirma o nosso sedevacantista de primeiro tipo, o fiel “não poderia estar certo nem sequer do que dizem os Evangelhos se o Magistério não lhe tivesse confirmado que são inspirados” (idem).
Já podemos, pois, começar a concluir esta parte. Para que se dê a infalibilidade do consensus fidelium in doctrinam fidei, ou seja, do sensus fidei, intervêm, por um lado, a virtude infusa da fé e, por outro, a proposição do Magistério, e é em razão desses dois elementos que a universalidade “moral” dos fiéis é dócil às verdades de fé. Mas é o Magistério da Igreja quem propõe as verdades em que se há de crer como de fé, e o faz com o penhor de sua autoridade infalível. Ou seja, o que se disse de cada fiel vale também para a universalidade dos fiéis: ela “não pode crer senão no que o Magistério lhe propõe e no grau de certeza com que lhe propõe; com esta diferença, porém: a docilidade da fé de um único fiel pode falhar, mas não a da Igreja universal” (Padre Calderón, ibid.).
É por esse motivo que a infalibilidade da Igreja in credendo, ou seja, a do conjunto dos fiéis enquanto crentes (sem distinção entre clérigos e leigos), se reduz à infalibilidade da Igreja in docendo, ou seja, a da docência da Hierarquia. (Cf. Franzelin, Tractatus de divina Traditione, op. cit., p. 114, nota 1: “Como o magistério, dotado deste carisma da infalibilidade, por sua ação ministerial, custodia, propõe, explica, protege a doutrina revelada, e conserva todos os fiéis na unidade da fé, por isso a infalibilidade ‘in docendo’ costuma ser dita ativa, e tem como finalidade a indefectibilidade ‘in credendo’, que pela ‘obediência da fé’ é ainfalibilidade passiva de todo o corpo da Igreja”. Cf. também H. Mazzella,Praelectiones scholastico-dogmaticae, ed. 6ª, Torino 1937, vol. I, p. 450: “A infalibilidade da Igreja in credendo é efeito da infalibilidade in docendo, que portanto é seu princípio: a infalibilidade ativa dos Pastores reclama necessariamente a infalibilidade passiva dos fiéis”. Apud P. Calderón, ibid.) Em outras palavras, a infalibilidade da Igreja in credendo reduz-se à infalibilidade da Igreja in docendo porque esta é a causa daquela: “a proposição do Magistério, que goza com exclusividade do carisma da infalível verdade, é ao modo de causa eficiente e formal da profissão de fé; enquanto a virtude da fé da Igreja universal não é de per si propriamente infalível em seu ato externo, mas indefectível na santidade de sua docilidade ao Magistério. Há portanto um único princípio ou carisma de infalibilidade com respeito à profissão de fé: o concedido por Nosso Senhor ao sucessor de Pedro, sozinho ou com os bispos” (P. Calderón, ibid.).
Prova-se suficientemente com isso a falsidade de afirmar, como o faz o nosso sedevacantista, que a pregação da Hierarquia “não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: ela não tem autoridade com relação aos atos de fé, ainda que confirmada por milagres. O ato de fé primordial (o crer em Deus) é infundido por Deus mesmo na alma de cada fiel, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. (Afora a patente falsidade de afirmar que o “crer em Deus” seja um ato de fé necessariamente infundido por Deus, quando se sabe, racional e dogmaticamente [cf. São Paulo e o Concílio Vaticano I], que a razão natural humana é capaz de conhecer a Deus por indução das coisas criadas por Ele.) Mas, insistiria ainda o autor da tese adversária, por que então os teólogos falam da infalibilidade do sensus fidei como algo distinto do Magistério no que tange ao julgamento do pertencente à Tradição? Não bastaria, consoante o que se viu, falar apenas da proposição do Magistério? “Não”, responde ainda o Padre Calderón (ibid.), “porque muitas vezes as causas são invisíveis e só podemos julgar de sua existência através de seus efeitos. Há muitas verdades propostas infalivelmente pelo magistério ordinário universal de modo oral cuja existência só pode ser conhecida pela profissão de fé da Igreja universal. Do que, sim, devemos estar certos é que a universalidade dos fiéis nunca teria feito profissão de fé com respeito a alguma verdade se esta não tivesse sido proposta como tal pelo Magistério da Igreja, porque [a universalidade dos fiéis] não tem outro critério para estar certa do que foi revelado por Deus”. Em outras palavras, o Magistério infalível da Igreja é a regra próxima da fé (regula fidei quoad nos proxima), enquanto as Escrituras e a Tradição são a regra remota da fé (regula fidei quoad nos remota), da qual aquela, por sua própria natureza, não pode afastar-se.
Resta-nos mostrar aqui, porém, ainda que brevemente, que esta forma de sedevacantismo de certo modo partilha tal perversão com o protestantismo, por um lado, e com o modernismo, por outro. Feito isso, passaremos na próxima seção do artigo a refutar a segunda falsidade da tese adversária: a reconstrução ideal da história que ela opera.
Pois bem, o principal traço da heresia protestante é o atribuir a cada crente (protestante, claro) um sensus fidei infalível, tal como, mutatis mutandis, o faz o nosso sedevacantista de primeiro tipo. Mas como se livra o protestantismo do intolerável papel de magister atribuído ao Magistério da Igreja? Por dois princípios, quais sejam: a) o da “sola scriptura”, com o qual se “congela oTraditum revelado nas Sagradas Escrituras” (P. Calderón, ibid.) e se transforma Cristo num Deus de papel; b) o do “livre exame”, pelo qual se atribui o carisma da infalível verdade à fé individual. E é este, em verdade, o principal desses dois princípios, porque é graças a ele que cada fiel individual saberia o que é de fato revelado e o que não o é, o que decorre e o que não decorre do revelado, etc. Naturalmente, este princípio, essencialmente liberal, entra necessariamente em contradição com o imobilismo do primeiro, e está na origem do caráter entrópico do protestantismo, ou seja, de seu fracionamento ao infinito em seitas que vão do luteranismo “ortodoxo” até a Igreja do Cuspe de Cristo... E como não seria assim se, como diz o Padre Calderón (ibid.), “a doutrina que possa seguir-se [da meditação pessoal] das Escrituras, conquanto seja certamente infalível pela garantida inspiração do Espírito Santo a cada crente, não tem por que ser imposta ao vizinho: toda teologia é pessoal e para proveito próprio, [e] que ninguém pretenda então constituir-se mestre dos demais”...?
Naturalmente, não estamos dizendo que a forma de sedevacantismo que nos ocupa em primeiro lugar sustente o princípio protestante do livre exame. O que, sim, dizemos é que: a) sustenta um dos pressupostos desse princípio, qual seja, a infalibilidade de um “instinto da fé” ou sensus fidei individual “pela garantida inspiração do Espírito Santo a cada crente” (crente “autêntico”, adjetiva o nosso sedevacantista); b) pressupõe que o Espírito Santo inspira ao conjunto dos crentes autênticos a mesma coisa, razão por que em face do sensus fidei de cada fiel autêntico ou da unidade do sensus fidei do conjunto dos crentes autênticos o Magistério da Igreja não tem senão caráter de persuasão, com o que, tal qual o protestantismo, conquanto mutatis mutantis, este tipo de sedevacantismo acaba também por resvalar pela ladeira do liberalismo e sua ojeriza ao caráter magisterial da autoridade; c) tal como o protestantismo, tem o sedevacantismo caráter entrópico: que o digam os cerca de 15 “papas” atuais que saíram de suas oficinas... (Não se entenda mal: bem sabemos que algumas correntes de sedevacantismo mitigado, não julgam legítimo eleger um papa sem a devida jurisdição para tal. Mas isso não contradiz o caráter essencialmente entrópico do sedevacantismo como um todo, do qual também são resultado essas mesmas correntes mitigadas.)
Por outro lado, todavia, esta forma de sedevacantismo partilha, sempre mutatis mutandis, a perversão da noção de sensus fidei própria do modernismo. Com efeito, como o protestante, o modernista (que é um católico liberal de certo tipo) abomina o caráter magisterial da autoridade, mas tampouco quer enveredar pelo caminho do fracionamento protestante. Assim, se, “ao comer do fruto oferecido pela serpente kantiana” (P. Calderón, ibid.), ele “descobriu” que as fórmulas conceptuais escolásticas herdadas do passado não serviam para expressar o mistério divino e concluiu por isso que devia aderir ao livre exame, concluiu também, todavia, que para evitar um fracionamento ao modo protestante o livre exame não devia ser individual ou individualista, mas comunitário.
Em função desse redirecionamento do princípio protestante, passou-se a crer que a revelação, expressa especialmente, sim, pelas Sagradas Escrituras, foi porém dada por Deus imediatamente não a cada fiel, mas tampouco exclusivamente à Hierarquia eclesiástica, e sim ao conjunto da Igreja, sem distinção entre fiéis e clérigos, mas tampouco sem hierarquização entre eles.
Por isso a verdadeira autoridade em matéria de fé, a sua regra próxima, seria na verdade o resultado do diálogo comunitário de todo o povo de Deus em seu livre exame coletivo das Sagradas Escrituras, donde a fatuidade ou mutabilidade das formulações não só escolásticas, mas também dogmáticas: a Hierarquia eclesiástica, incluído naturalmente o Papa, não deveria exercer senão o papel de mediador desse diálogo. Sucede porém que, como, apesar de “assistido infalivelmente pelo Espírito Santo”, o livre e dialogado exame comunitário do modernismo não pode terminar nunca, por tropeçar nas insuperáveis e volúveis contradições entre os multitudinários participantes de tal concílio permanente, aos dogmas outrora decretados ex cathedra pelos Sumos Pontífices nada os vem substituir, nenhuma decisão, nenhuma orientação além da linha geral de seguir dialogando per omnia saecula saeculorum.
Pois bem, não dizemos que o nosso sedevacantista de primeiro tipo defenda a correção modernista do sensus fidei protestante. Mas dizemos, sim, que: a) partilha com ela, mutatis mutandis, a suposição da assistência garantida do Espírito Santo ao conjunto dos féis (fiéis “autênticos”, adjetiva ele), sem marcada hierarquização entre crentes e hierarquia eclesiástica; b) por pressupor que o Espírito Santo inspira ao conjunto dos fiéis autênticos a mesma coisa, considera que o Magistério da Igreja tem, no máximo, caráter de persuasão, razão por que não lhe seria inconveniente o papel de mediador – não, é claro, de um diálogo com as características do diálogo modernista, mas sim, digamos, de possíveis arestas ou mal-entendidos entre os diversos “assistidos infalivelmente pelo Espírito Santo”; c) ainda mutatis mutandis, partilha com o modernismo, como com o protestantismo, a ojeriza ao caráter magisterial da autoridade.
(Continua.)
[1] Repita-se: não digo que Pacheco Salles sustente o sedevacantismo em A Figura deste Mundo. Mas digo que é precisamente do argumento esgrimido nessa obra que se valem muitos sedevacantistas isolados. Cf. nota 6 da primeira seção do artigo.
[2] Um dogma de fé só pode partir do Magistério eclesiástico justamente pelo fato de seu ministério não ter como critério próprio a fé nem a razão. Com efeito, embora um Papa deva considerar teologicamente – ou seja, humano modo – o que vai definir, o carisma da infalibilidade que o assiste “quando define um dogma não depende de sua fé nem de sua ciência pessoal, pois ele poderia ser herege interiormente e nem por isso deixaria de ser infalível. O critério de verdade domagister eclesiástico é a assistência do Espírito Santo atualizada por sua intenção ministerial, pois para falar em nome de Cristo ele não tem senão de fazê-lo intencionalmente; de maneira que, [...] quanto mais impositiva for a intenção com que propõe sua sentença, mais assistida será pelo Espírito Santo e menos margem de erro terá” (P. Calderón, ibid.). E o que se acaba de dizer é verdade de fé e deve pois ser crido docilmente; mas é negado pelos sedevacantistas.
[3] Comentário à Física de Aristóteles, livro II, n. 268.
[4] Cf. Santo Agostinho, De Trinitate, III, 8-9, e De Genesi ad litteram, VI, 10.
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