Carlos Nougué (Estudos Tomistas)
Diz o linha-média: É impossível que um papa defeccione na fé. Com efeito, como o mostra São Roberto Bellarmino, o Papa Sisto IV, antes de tudo por meio do Sínodo de Alcalá, e depois por si mesmo, condenou os artigos de um certo Pedro de Oxford, um dos quais afirmava que a Igreja da cidade de Roma poderia errar. Trata-se pois de condenação feita pelo próprio magistério, que, como se sabe, não pode errar. Logo, quando um documento como a declaração Dignitatis humanae, do Concílio Vaticano II, diz coisas que vão aparentemente contra a fé e contra o estabelecido por dois mil anos de magistério infalível, não pode passar disso mesmo: só aparentemente se opõem à fé e ao estabelecido anteriormente pelo magistério. Se porém se mantém a aparência de oposição, não pode dever-se senão a um mau entendimento e pois a um mau juízo. Replica o sedevacantista: De fato é impossível que um papa enquanto papa cometa qualquer atentado contra a fé; se o fizesse, falharia a promessa de indefectibilidade feita por Cristo a Pedro. Por isso, como o diz São Roberto Bellarmino, se segundo suposição um papa defeccionasse na fé, ipso facto perderia a jurisdição, ou seja, deixaria de ser papa, porque – como está implícito no dito – Cristo lhe retiraria a jurisdição no ato mesmo em que defeccionasse na fé. Logo, não pode haver papa herético, ou ao menos publicamente herético. – Por isso, ainda tem razão São Roberto Bellarmino quanto à impossibilidade de que a Igreja de Roma erre, porque, com efeito, o “papa” herético já não é o bispo da Igreja de Roma. E assim as heresias de um Francisco – as quais por evidentes não podem negar-se – não são heresias de um bispo de Roma.
Respondo a ambos: Assim como a decisão do Concílio de Florença (sob Eugênio IV) quanto ao sacramento da ordem não podia, por impossível, atentar contra a fé, assim também a condenação de Pedro de Oxford por Sisto IV não podia estar equivocada. Mas, assim como – veja-se que estamos em pleno campo da analogia – a decisão de Florença sobre a ordem necessitou da precisão que lhe deu Pio XII (cf. a constituição apostólica Sacramentum Ordinis), assim também a condenação emitida por Sisto IV precisou da complementação do Concílio Vaticano I. Com efeito, diz este (na constituição dogmática Pastor aeternus) que “o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra – isto é, / [1ª. condição vaticana] quando cumprindo seu cargo de pastor e doutor de todos os cristãos, define por sua suprema autoridade apostólica que / [2ª.] uma doutrina sobre a fé e os costumes / [4ª.] deve ser sustentada / [3ª.] pela Igreja universal –, pela assistência divina que lhe foi prometida na pessoa do bem-aventurado Pedro, goza daquela infalibilidade de que o Redentor divino quis que fosse provida sua Igreja na definição da doutrina sobre a fé e os costumes”. Ora, como depois se explicou suficientemente, esta definição implica que só se se cumprem tais quatro condições alcança um papa a infalibilidade por assistência do Espírito Santo. Mas dizê-lo implica dizer também – como determina qualquer bom manual de lógica – que os papas, se não cumprem tais quatro condições, não alcançam a infalibilidade em alguma declaração.[1] Pois bem, como o mostrarei detidamente no debate com Carlos Ramalhete ou, à falta deste, na continuação do escrito “Da necessidade de resistir ao magistério conciliar”, o magistério conciliar,[2] por liberal e pois por antidogmático, nunca cumpriu as quatro condições vaticanas e, portanto, nunca alcançou o grau de infalibilidade. Mas, pelo mesmo motivo, nunca alcançou sequer o grau de certeza. Mais que isso, todavia, suas declarações vão amiúde contra o estabelecido pelo magistério infalível de quase dois mil anos. Por conseguinte, é necessário resistir ao magistério conciliar, porque há que resistir a tudo o que atente contra a fé, e porque, como diz São Paulo, “ainda que nós mesmos ou um anjo do Céu vos anunciemos um Evangelho diferente daquele que vos tenho anunciado, seja anátema” (Gl 1, 8). Objeção do linha-média: Insisto em que ninguém pode julgar um papa, nem, pois, nenhuma de suas declarações; além de que admitir que um papa possa defeccionar na fé implica crer que falhou a promessa de Cristo de assistência perpétua ao papado. Digo a esta objeção:
• As declarações dos papas dirigem-se a homens, e os homens nos caracterizamos por ser animais racionais. Ora, as quatro condições estabelecidas pelo Vaticano I foram-no justamente para que, racionalmente, pudéssemos reconhecer como infalíveis certas declarações papais. Pois bem, com a mesma racionalidade com que, pelas quatro condições, reconhecemos que certas declarações papais são infalíveis, com a mesma racionalidade, portanto, somos capazes de reconhecer que alguma declaração não infalível (ou seja, não cingida das quatro condições vaticanas) vai evidentemente contra o estabelecido por alguma ou algumas declarações infalíveis.[3] É o caso, muito por exemplo, da Dignitatis humanae, do Concílio Vaticano II, ou das escandalosas e demolidoras encíclicas de Francisco.[4]
• Como diz a mesma constituição dogmática Pastor aeternus, só se se cumprem as quatro condições vaticanas é que o papa tem “a assistência divina que lhe foi prometida na pessoa do bem-aventurado Pedro” e, portanto, “goza da infalibilidade de que o Redentor divino quis que fosse provida sua Igreja na definição da doutrina sobre a fé e os costumes”. Objeção do sedevacantista: Insisto no dito por São Roberto Bellarmino: admitir que um papa enquanto papa possa ser herético implica aceitar que falhou a promessa de Cristo de assistência perpétua ao papado, razão por que, se um papa se faz herético, Cristo lhe retira automaticamente a jurisdição. Por conseguinte, a hierarquia conciliar já não pode ser parte da Igreja. – Ademais, São Roberto Bellarmino foi dito o Doutor da Igreja: está para o Vaticano I assim como Santo Tomás de Aquino esteve para Trento. Digo a esta objeção:
• Pelo estabelecido pelo Concílio Vaticano I, a hierarquia conciliar não pode não ser parte da Igreja.[5] Mas parece que só o é secundum quid, por certo aspecto, não simpliciter ou absolutamente. Em outras palavras, parece que só o é por jurisdição precária. Explico-o. Como dizia Pio XII, um assassino já perdeu por seu mesmo ato o direito à vida e à cidadania. Mas, digo eu, é preciso que o estado o julgue, lhe retire a cidadania e o condene à morte. Enquanto não o faz, tal assassino continua com a vida e com a cidadania, ainda que só de certo modo, ou seja, em estado precário. Pois é, analogamente, o que me parece se passa com a hierarquia conciliar: já teria podido perder ipso facto, por contumácia na heresia, a jurisdição; mas ainda a preserva precariamente, por falta do devido julgamento, tudo o que pode concluir-se do dito no Código de 17. – Era pouco mais ou menos assim que pensava o tomista Domingo Báñez (1528-1604) (cito-o de memória): “Se se me pergunta se um papa que tenha incorrido em heresia ainda é papa, digo: por um ângulo, não; por outro, sim” – ou seja, enquanto um concílio não o indispuser com o restante da Igreja. Atenção: não se trata da doutrina do conciliarismo, condenada pelo Papa Pio II mediante a bula Exsecrabilis (de 10 de janeiro de 1459). O conciliarismo supunha que um concílio ecumênico ou universal fosse a autoridade suprema da Igreja, acima pois do papa. Já a posição de Báñez foi primeiramente defendida pelo Cardeal Caetano e depois por uma longa série de teólogos, entre os quais tomistas como João de Santo Tomás e outros como S. Afonso Maria de Ligório. Segundo todos eles, um concílio não teria poder propriamente para depor um papa, senão que, assim como um conclave tem poder para dispor um papa, assim também um concílio teria poder para indispor um papa herético (por herético) com o restante da Igreja. Como quer que seja, hoje um concílio não faria senão reafirmar Francisco...[6]
• Além do dito pela Pastor aeternus e citado na resposta à objeção do linha-média, tenham-se em conta: a) o Decretum de Graciano (Pars I, dist. 40, cap VI, cânon “Si Papa”): “o Papa [...] por ninguém deve ser julgado, a menos que se afaste da fé”; b) o Papa Inocêncio III: “Somente pelo pecado que cometesse em matéria de fé poderia eu ser julgado pela Igreja” (Sermão IV sobre o Romano Pontífice, Migne PL 217, 670); c) o Papa São Leão II: “Anatematizamos Honório [I], que [por favorecedor de heresia] não ilustrou esta Igreja Apostólica com a doutrina da tradição apostólica, mas permitiu, por uma traição sacrílega, que fosse maculada a Fé imaculada [...] da tradição apostólica, que recebera de seus predecessores” (Denz.-Sch. 563).
Logo, um papa pode defeccionar na fé (sem perder ipso facto a jurisdição).
• É da essência não só da lei mas de qualquer decisão judicial que sejam promulgadas. Mas a decisão de Cristo de retirar a jurisdição à hierarquia conciliar teria permanecido oculta. Por conseguinte, a tese brandida pelo sedevacantismo incorre em certo paralogismo.
• Que São Roberto Bellarmino tenha sido declarado Doutor da Igreja não implica que fosse inerrante mesmo com respeito a temas eclesiológicos, assim como, por exemplo, que Santo Tomás de Aquino tenha sido declarado Doutor Comum e pois geral não implica que fosse inerrante, como de fato não o foi, por exemplo, quanto à Imaculada Conceição. E temos até o consabido caso de diversas incompatibilidades doutrinais entre os doutores Santo Tomás de Aquino e São Boaventura, parte das quais a Igreja resolveu-a em favor de Tomás, sem que isso implicasse a perda para Boaventura do título de doutor. Et reliqua. – Ademais, São Roberto Bellarmino não pode ser posto como doutor no mesmo plano que Santo Tomás de Aquino: este é o Doutor Comum para todos os católicos e pois para todos os concílios, o que se confirma pelo fato de que foi especialmente depois do Vaticano I que os papas insistiram em atribuir a Tomás de Aquino tal título. Portanto, não se segue a analogia feita pelo sedevacantista. À guisa de conclusão. Como se pode ver, as duas posições – a do linha-média e a do sedevacantista – confluem em dar ao papa uma como inerrância ou indefectibilidade ou infalibilidade geral. Tal demasiado encarecimento do papado leva a linha média a negar os evidentes atentados da hierarquia conciliar contra a fé, enquanto leva o sedevacantismo a negar o prosseguimento da Igreja visível enquanto Igreja, ou seja, enquanto sociedade com autoridades e hierarquia constituídas.[7] As consequências são graves em ambos os casos: no primeiro, certa escusação de heresias, ainda que adornada dos mais variados subterfúgios; no segundo, a tendência à entropia, pela negação do estabelecido pelo Vaticano I e referido na nota 5. Dubium. Ainda há lugar, porém, para uma dúvida. Com efeito, muitos dos sacramentos tais quais estabelecidos pelo magistério conciliar são duvidosos. É o caso da nova forma do sacramento da ordem, cuja validade pode pôr-se em dúvida. Se assim é, ou seja, se o novo sacramento da ordem é inválido, então Francisco, ordenado pelo novo rito, não será papa. Solução. Como direi em outros lugares, de fato há dúvidas quanto à validade de muitos dos sacramentos tais como estabelecidos pelo magistério conciliar. Sobre uns pesam menos dúvidas, sobre outros mais. Mas os sedevacantistas que afirmam a sedevacância atual porque o novo sacramento da ordem seria inválido esquecem que, como diz qualquer bom manual de direito, in dubio pro reo, e que, à falta da devida declaração magisterial (que obviamente hoje não pode dar-se), não podemos considerar os referidos sacramentos conciliares senão numa escala que vai do provavelmente inválido ao provavelmente válido. E dizer “possivelmente” ou “provavelmente” não é o mesmo que dizer “certamente”, como é óbvio, e como o explica cabalmente Aristóteles em seus indispensáveis Tópicos.
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[1] Não trato aqui o caso, frequentíssimo, em que o papa alcança o grau de certeza em alguma declaração, caso em que os católicos também lhe devemos dócil assentimento. Note-se todavia que, além de ainda poder alcançar grau inferior ao da certeza, pode um papa falar não como tal, mas como doutor privado – o que obviamente de modo algum exige dócil assentimento aos católicos, ainda que possa requerer sua obsequiosidade. Todas essas sutis distinções, e muitas mais, reservo-as para o possível debate com Carlos Ramalhete ou, à falta deste, para a continuação do escrito “Da necessidade de resistir ao magistério conciliar” (cf. aqui).
[2] Ou seja, o do Vaticano II sob Paulo VI e dos papas seguintes.
[3] Tal evidência pode ser tal para todos, ou apenas para os sapientes.
[4] O que acabo de dizer mostrar-se-á detidamente, e não só com respeito à Dignitatis humanae e às encíclicas de Francisco, no referido debate ou na referida continuação.
[5] Com efeito, lê-se na Sacrae Theologiae Summa, trat. III, “De la Iglesia de Jesucristo”, pelo P. J. Salaverri S. J. (n° 294) [dos Padres da Companhia de Jesus, 4.ª ed., Madri, B.A.C., 1962]: “1) A perenidade do Primado é definida explícita e diretamente no Concilio Vaticano [I] (D 1824s). [D 1825 Cânon. Se alguém, pois, disser que não é de instituição de Cristo mesmo, quer dizer, de direito divino, que o bem-aventurado Pedro tenha perpétuos sucessores no primado sobre a Igreja universal... seja anátema.] 2) A perenidade da Igreja é definida explícita, mas indiretamente, no mesmo Concílio (D 1821-1824s). 3) A perenidade da Hierarquia definiu-a implicitamente o Concílio Vaticano [I]. Com efeito, definiu explicitamente a perenidade do Primado (D 1824s). É assim que também definiu que é próprio do Primado ter subordinados a si e governar os Pastores ou Bispos da Igreja universal (D 1827-1831); logo, sempre haverá Pastores ou Bispos subordinados ao Primado. Isto mesmo é ensinado explicitamente na introdução à Constituição da Igreja (D 1821)”.
[6] Cf. As indicações bibliográficas referentes ao artigo “Se a hierarquia conciliar está fora da Igreja”. [7] Aliás, eis algo que os sedevacantistas não entendem: a autoridade é o princípio formal da sociedade. Sem ela, portanto, não há sociedade. Mas a Igreja é uma sociedade. A conclusão impõe-se.
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