Por Porque creio
Entre São Leão IV e Bento III (855), uma calúnia, acreditada pela ignorância e pela má fé, coloca na Sé apostólica a famosa papisa Joana. Os escritores hostis ao papado pretenderam, sem citar em apoio à sua opinião um só testemunho contemporâneo, que uma mulher, por nome Joana, originária de Moguncia e de gênio distinto, conseguira dissimular seu sexo e entrar nas ordens sob o nome de João da Inglaterra. Alcançando, graças a seus talentos, as mais altas dignidades eclesiásticas, teria sido eleita, como papa, em 855, sob o nome de João VIII. A fábula toma agora as proporções de uma obscenidade grosseira. Durante uma procissão solene, a papisa Joana dá à luz na mesma igreja de São João de Latrão. Nada dizemos da vergonhosa cerimônia da sedia cujos pormenores não podem ser escritos por uma pena honesta.
Durante três séculos, nenhum historiador falou nessa fábula tão ridícula quão inverossímil, de uma mulher elevada ao soberano pontificado. Ainda mesmo que o caso fosse verdadeiro, para a Igreja não resultaria nem responsabilidade nem vergonha. Seria uma surpresa e nada mais. Mas nenhum testemunho sério e contemporâneo autoriza a reconhece-lo como autêntico. Na sua História da Igreja, o cardeal Hergenroether, cuja competência e autoridade são indiscutíveis, contenta-se com dizer: “É uma fábula desde muito tempo reduzida ao nada, que Leão IV tivesse como sucessor a papisa Joana”.
Mas pode-se perguntar: qual foi, portanto, a origem de semelhante boato, e de que modo se pôde propagar? Num trabalho publicado em 1863, o doutor Doellinger, cuja ciência histórica é incontestável, rejeita a opinião que faria remontar ao século XI a origem da lenda, e seria mais verdadeiro dizer que data só do meado do século XIII. Segundo Barônio, a fábula da papisa não seria mais do que uma sátira da indolência de João VIII, particularmente no procedimento de Fócio. O O. Secchi, sábio jesuíta de Roma, não vê nisso senão uma calúnia inventada pelos Gregos. Em suma, as explicações soçobram todas perante o silêncio da tradição, e, apesar dos trabalhos históricos empreendidos em nossos dias, nada se descobriu que remonte além do século XIII. É no livro dos “Sete dons do Espírito Santo”, escrito pelo Dominicano Estevam de Borbone, lá pelo meado do século XIII, que apareceu, pela primeira vez, a notícia da papisa Joana; outro Dominicano, Martinho o Polaco, por muito tempo capelão do papa, propagou-a na sua “Crônica dos papas”. Cita-se também certo manuscrito de Anastácio, o Bibliotecário, onde esta lenda teria aparecido, não no texto, mas na margem e em caracteres diferentes dos da obra, o que revela uma interpolação. A mesma narrativa passou nas diversas Crônicas dos século XIV e XV, redigidas, as mais das vezes, por frades dominicanos ou franciscanos. Os autores da “História literária da França” admiram-se e com razão de que os propagadores mais ingênuos e talvez os inventores de uma história tão injuriosa para o papado, se encontram precisamente nas fileiras de uma milícia tão fiel à Santa Sé.
Em todo o caso, a lenda progrediu muito. No concílio de Constança, João Huss se aproveitou dela a favor de sua doutrina sobre o papado e não foi rebatido. O mesmo João Gerson lembra a história de um papa feminino para mostrar que a Igreja pode se enganar sobre uma questão de fato. O caso parecia portanto admitido sem contestação.
Concebe-se então que, na segunda metade do século XV, os Gregos se valessem dessa fábula; era um achado precioso para os inimigos da Santa Sé e para a causa do cisma. Explica-se do mesmo modo que, no século XVI, os discípulos de Lutero e de Calvino explorassem esse conto com uma animosidade prodigiosa e lançassem mão de tal invenção para dela se fazer uma arma contra o papado.
Contudo, vários dos mais doutos e mais conscienciosos entre os protestantes, tais como Blondel, Casaubon, Bayle, não se demoraram em combate-la. Chamier, Dumoulin, Bochart, Basnage e outros homens instruídos, de diversas seitas, não hesitaram em tratar a história da papisa Joana como pura invenção de copista ou de comentador. O pastor Jurieu a qualifica de fábula monstruosa, e Bayle de simples historieta.
Os escritores católicos, Eneas Sylvius, em seguida papa, sob o nome de Pio II; Onufro Pavini, Belarmino, Florimundo de Rémond, de Launoy, o P. Labbe e muitos outros, refutaram amplamente a velha lenda. Mas desprezam-se essas fontes preciosas de erudição. O século XVIII ressuscitou a questão que foi de novo abafada pela Revolução. Uma monstruosa compilação em nossa época: “Os crimes dos papas e dos reis”. Repetiu e desenvolveu a velha lenda da papisa. Quantos ignorantes e papalvos, em nossos dias, julgam ainda fazer dela um argumento contra a Igreja!
Depois do histórico da questão, vamos às provas de que a pretensa papisa Joana não é mais do que uma fábula insustentável.
1 – Esse fantasma não acha lugar para se colocar entre Leão IV e Bento III. Leão IV morreu em 17 de julho de 855; Bento VIII foi, com toda a verossimilhança, eleito no mesmo mês e sagrado em 29 de setembro do mesmo ano. Então, em que fica o reinado da papisa?
2 – Já dissemos: Nenhum contemporâneo fala de tal papisa Joana; os três séculos seguintes observam o mesmo silêncio a respeito, e é somente no século XIII que esta fábula é consignada por escrito na crônica interpolada de Martinho, o Polaco.
3 – Como todas as fábulas e lendas, a da papisa Joana é diversamente contada. Essa mulher elevada sobre a cadeira de São Pedro, nasce ora em Atenas, ora em Moguncia, ora na Inglaterra. No princípio, não se lhe conhecia o nome e não era douta; ocupava o cargo de simples secretário; em seguida, chamou-se Inez, Gilberta e Joana, este último nome sendo mais parecido com o de João, usado naquela época por alguns papas cuja reputação ficava equivoca ou eivada de fraqueza.
4 – Quanto à famosa pedra monumental de uma das ruas de Roma, com uma inscrição de letras iniciais e enigmáticas; quanto à estátua descoberta na mesma rua em que o cortejo pontifical evitava de passar, estátua representando uma mulher e perto dela um menino, é necessário todo um sistema preconcebido de interpretação para ver nisso tudo uma alusão à papisa Joana, e os arqueólogos indicaram-lhes uma significação histórica e completamente romana fora dessa falsa história.
Para concluir, somos do parecer do ministro protestante David Blondel, o qual, refutando esta fábula, declara que “não se deve aplicar o espírito em pesquisas inúteis sobre um assunto que não merece consideração alguma”. “Os protestantes”, dis Bayle, “puderam objetar legitimamente o conto da papisa enquanto não estava refutado. Dele não eram os inventores; achavam-no em várias obras compostas por bons papistas; mas desde que foi refutado por razões indiscutíveis, tiveram que abandoná-lo.”
A questão é, portanto, julgada. Hoje, para qualquer espírito instruído e sério a fábula da papisa Joana não é mais do que uma prova da baixeza a que pode resvalar o espírito de partido eivado de preconceitos contra a Igreja e contra a verdade.
Cauly, Mons. E. Curso de Instrução Religiosa, Tomo IV.
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