«A Questão da Consagração Episcopal sem Mandato do Papa
Prof. Doutor Rudolf Kaschewsky
1. A consagração de um bispo ocupa, na hierarquia das consagrações, o lugar mais importante; não há, com efeito, consagração para um cardeal ou Papa.
O bispo goza de dois poderes:
1) um poder de consagração;
2) um poder de jurisdição, que só pode exercer se estiver na posse de
sua diocese.
2. Um bispo não tem autorização para conferir a ordenação episcopal a
ninguém sem mandato do papa (cân. 1013, CIC 1917). Aquele que agir em
contrário, incorre em excomunhão, “latae sentenciae”, reservada à Sé Apostólica
(cân. 1382, CIC 1983). A excomunhão “latae sentenciae” entra em vigor com o
próprio ato, sem portanto ser decretada. Em semelhante caso, o direito antigo
ameaçava o infrator unicamente de suspensão (“ipso jure suspensi sunt, donec
Sedes Apostolica eos dispensaverit”, cân. 2370, CIC 1917).
Foi somente em 9 de agosto de 1951, por um decreto do Santo Ofício, que
a sanção de excomunhão (“ipso facto”), reservada à Santa Sé “specialissimo
modo”, foi introduzida para a consagração ilegal dos bispos, e isso devido, sem
dúvida nenhuma, à trágica evolução da Igreja na República Popular da China.
Essa sanção foi mais tarde confirmada, em sequência das atitudes da seita de
Palmar de Troya (Espanha).
3. Por outro lado, o direito canônico está longe de julgar as coisas
unicamente segundo os aspectos exteriores. Seria, com efeito, contradizer a
concepção jurídica corrente não ter em conta as circunstâncias particulares ou
a disposição subjetiva da pessoa em causa.
No caso de uma consagração episcopal sem mandato do Papa, a ameaça de
sanção correspondente aos termos do cân. 1382; trata-se realmente da sanção de
um ato. Aqui se aplica, no entanto, o princípio: “A sanção de um ato não é
executória se existe circunstância atenuante legalmente estabelecida.”
Tem de ser considerado especialmente o estabelecido nos cân. 1323 e
1324 (CIC 1983), aos quais corresponde o cân. 2205, 2 e 3 (CIC 1917), Trata-se
de saber se um ato ameaçado de sanção existiu unicamente para evitar um grave inconveniente
ou para suprir uma necessidade.
Citamos um extrato do cân. 1323, 3 (CIC 1983): “Não está sujeito a
nenhuma pena aquele que, ao violar a lei, procedeu coagido por necessidade.” No
mesmo sentido se exprime o velho Códex (cân. 2205, 2) (sobre as restrições
mencionadas nos dois casos, veja o parágrafo 7, adiante).
4. Que se entende por “grave inconveniente” e por “necessidade”?
Citaremos o manual de direito eclesiástico de E. Eichmann (Kl.
Morsdorf): “O grave inconveniente ou a necessidade é uma situação
constrangedora tal, que, sem que haja falta, a pessoa molestada é física e
moralmente obrigada a desrespeitar uma lei para afastar o perigo (Necessitas non habet legem). Pode
tratar-se de uma ameaça relativa a bens espirituais, à vida, à liberdade ou a
outros bens terrestres.”
5. Está estabelecido em geral – e não é seriamente posto em causa por
ninguém – que, devido às orientações tomadas após o Concílio, pode
verificar-se, no seio da Igreja, uma ameaça séria aos bens espirituais, no que
respeita à formação de padres, à Fé, à Moral, às celebrações religiosas. A
prova desta afirmação encontra-se em numerosas publicações, entre as quais, e
principalmente, a nossa revista Una
Voce-Korrespondenz.
O problema é saber se pode e como pode ser combatida essa ofensa aos
bens espirituais. Ninguém pode negar que um meio (e não o único) de curar os
males de que sofremos consiste no despertar das vocações sacerdotais e na
formação de bons padres. Não é raro acontecer que jovens teólogos nos perguntem
qual dos seminários diocesanos será mais recomendável, quer dizer, aquele onde
a adaptação corruptora ao espírito do mundo ainda não tenha entrado, onde seja
ensinada prioritariamente a verdadeira vocação religiosa, onde a adoração de
Cristo no Santíssimo Sacramento do Altar seja o cerne da vida sacerdotal, onde
a comunhão de joelhos e o uso da batina sejam naturais (isso para falar também
dos sinais exteriores, que são sempre indício de disposição interior). E a
resposta é: nenhum seminário atual.
6. Assim, a situação de grave inconveniente e de necessidade está
suficiente, clara e indiscutivelmente estabelecida. Para ultrapassar essa
situação verdadeiramente perigosa, são corretamente formados, fora dos
seminários oficiais, candidatos ao sacerdócio, candidatos que, de outro modo,
nunca seriam ordenados, quer dizer, não poderiam tornar-se padres.
Encontramo-nos assim numa situação de necessidade tal, que qualquer
sanção está excluída. Só a consagração de um bispo que possa ordenar esses
candidatos ao sacerdócio pode afastar o perigo descrito. Com efeito, não só
estariam perdidos os estudos desses candidatos ao sacerdócio e a sua formação
sacerdotal, mas os fiéis deles dependentes não se beneficiariam dos bens
espirituais que poderiam receber. Porque os fiéis, por seu lado, também se
encontram em situação de “perigo”.
Claro que seria exagero dizer que em nenhuma igreja oficial
pós-conciliar se ministram os bens espirituais necessários à salvação das
almas; mas a atual situação de desamparo lança os fiéis na incerteza de saber
se determinada catequese ou determinado serviço religioso que lhes propõem
ainda são verdadeiramente católicos ou não.
Observadores moderados e objetivos da atual situação da Igreja
confessam igualmente que, em determinados lugares, a verdadeira intenção do
padre, absolutamente indispensável à validade de um sacramento, é duvidosa ou
está claramente ausente.
7. No cân. 2205, 2 (XIX 1917), a ameaça de sanção nessas circunstâncias
(estado de perigo, situação de perigo) só é levantada quando se trata de lei
puramente eclesiástica e não de direito divino. Essa restrição não se encontra
no novo Código (1983), e como os que querem falar de direito nessas
circunstâncias se servirão, sem dúvida nenhuma, do novo CIC, a restrição
mencionada não será considerada critério de julgamento, ainda que quem
procedesse à ordenação de um bispo sem mandado a isso se sentisse ligado.
[Nota: É de direito divino que o poder de instituir bispos pertence ao
Sumo Pontífice. Porém Cajetano faz notar, no seu De Romani Pontifici Institutione (cap. XIII, ad 6), que importa
distinguir entre o poder do Sumo Pontífice e o exercício desse poder, dujo modo
pode variar no decorrer dos tempos. As instituições dos bispos feitas durante a
vacância da Santa Sé, e consideradas válidas, explicam-se dessa forma. O modo
foi fixado por Pio XII para o exercício do poder pontificial é regido pelas
leis do direito canônico, e, portanto, aqui se aplicam as normas do direito,
explicadas nesse estudo.]
8. Outra restrição: Apenas situações de necessidade de caráter
acidental livram da sanção, quer dizer: inconvenientes que estão normalmente
relacionados com o cumprimento de certas leis devem ser aceitos e não autorizam
a transgredir a lei. Esta restrição não se aplica aqui em nosso desfavor,
precisamente porque não é habitual (é acidental) e não natural em sumo grau que
o respeito da lei em causa – abster-se de consagrar bispos sem mandato do Papa
– provoque uma situação de perigo. O fato de a salvação das almas ser posta em
perigo por causa de abstenção da referida consagração de bispos não constitui
(em todo o caso, na natureza das coisas) uma situação de perigo ligada ao
cumprimento da lei, mas caracteriza a anormal situação atual.
9. Outra restrição consiste no fato de a ação ameaçada de sanção ter
sido efetuada para afastar uma situação perigosa. Ela não é, no entanto, isenta
de sanção se for intrinsecamente má ou redunde em dano das almas (cân. 1324, 1,
no. 5). No antigo direito, os limites da dispensa da sanção eram ainda mais
reduzidos (cân. 2205, 2); a ação que levasse ao desprezo da Fé ou da hierarquia
era, em todo o caso, condenada.
O problema é saber se uma ordenação episcopal sem mandado do Papa é uma
ação má em si (“intrinsece malum”) e redunda em dano das almas. Isso vai,
indiscutivelmente, para além do direito da Igreja e, pelo menos, escapa ao
juízo puramente jurídico, e é precisamente aí que as opiniões divergem. Uns
falam de um enorme dano das almas, por causa do perigo de cisma; outros, de uma
ação inelutavelmente necessária à salvação das almas.
10. No entanto, não é preciso dar resposta a esse problema, porque o
cân. 1324, 3 (CIC 1983) constata de modo lapidar: nas circunstâncias descritas
no parágrafo 1, o contraventor não incorre em sanção. Por outras palavras, isso
significa: ainda que pretendessem que a ordenação episcopal sem mandato do Papa
constituísse automaticamente, em qualquer caso, uma ação punível por si mesma,
ou que redunda em dano das almas, ficaria, de qualquer maneira, livre de toda a
sanção imediata, dada a situação de perigo descrita.
Daí que, com base na situação de perigo indiscutível (cân. 1323, no. 4;
1324, 1, no. 5 e 1324, 3), a ameaça de excomunhão prevista no cân. 1382, para o
autor de uma consagração episcopal não autorizada, não se aplica.
11. Ainda que quisessem pôr em dúvida a situação de perigo como foi
descrita, convinha verificar o seguinte:
Ninguém pode negar que um bispo, nas circunstâncias acima referidas
consagre outro, considera, pelo menos subjetivamente, que existe uma situação
de necessidade que redunda em dano das almas. Daí conclui-se que não se pode
falar de violação premeditada da lei, porque quem vai contra a lei,
acreditando, mesmo sem razão, na justa razão da sua ação, não age de forma
premeditada. O novo direito da Igreja exprime-se ainda com maior clareza:
a) Não está sujeito a nenhuma pena aquele que, ao violar a lei ou o
preceito, julgou, sem culpa, existir alguma das circunstâncias descritas nos
nos. 4 ou 5 do cân. 1323, 7.
b) O autor de uma violação não está isento de punição, mas a pena
prevista pela lei ou preceito deve ser atenuada, ou substituída, por uma
penitência, se o delito foi cometido por quem, por um erro mas com culpa,
julgou existir alguma das circunstâncias referidas no cân. 1323, 4 e 5 (cân.
1324, 1, no. 8).
Mas, ainda que alguém quisesse dizer que ele tinha interpretado a
situação de perigo (na realidade inexistente) de maneira punível, isso
implicaria que:
1) a excomunhão não se poderia fazer como mencionado no cân. 1382;
2) por outro lado, uma eventual pena que um juiz pudesse aplicar
deveria, de qualquer maneira, ser mais clemente do que previsto pela lei, de
forma que, também neste caso, a excomunhão não seria de considerar.
Em resumo:
A) Devido à existência de uma real situação de perigo, aquele que
ordenasse um bispo sem o fazer em nome do Papa não seria passível de sanção nas
circunstâncias descritas.
B) De igual modo, se a situação de perigo não existisse de maneira
objetiva, o contraventor ficaria isento de qualquer sanção, dado que teria
considerado subjetivamente, e de maneira não culpável, que o perigo de fato
existia (cân. 1324, 1, no. 5).
C) Também é preciso dizer que, mesmo havendo suposição errada e punível
da existência de um perigo, tal não implicaria, no entanto, sanção e, menos
ainda, excomunhão (cân. 1324, 1, no. 8, 3).
RESULTADO
A opinião muitas vezes formulada de que a ordenação de um ou vários
bispos sem mandato pontificial implicaria automaticamente a excomunhão e
conduziria ao cisma é falsa. Tendo em conta os próprios termos da lei, uma
excomunhão no caso de que tratamos não pode ser aplicada, nem ipso facto nem por decisão de um juiz.
BIBLIOGRAFIA
CIC 1917: Codex Iuris Canonici Pii X Pontificis Maximi, Typis
Polyglottis Vaticanis, MCMLVI (Estado do Vaticano, 1956).
CIC 1917: Codex Iuris
Canonici. Codex des kanonischen Rechtes. Lateinisch-deutsche Ausgabe. Verlag
Butzon & Becker Kevelaer, 2. verb. U. vermehrte Aufl., 1984.
Eichmann-Morsdorf, Lehrbuch des Kirchenrechts, I. Band,
Paderborn, 8. Aufl., 1953, p. 396.
“Osservatore Romano”, Deutsche Wochenausgabe, I. Oktober 1975,
p. 3.
J. Listl, H. Muller, H.
Schimtz, Handbuch des Katolischen
Kircherechts, Regensburg, 1983, p. 931 f.
III. Band, Prozess-und Strafrecht, Paderborn, 10. Aufl. 1962, p. 314.
“Una Voce-korrespondenz”, 18/2, Marz-April 1988.»
FLEICHMAN, Dom Lourenço OSB. Tradição versus Vaticano - Dossiê completo das negociações entre Mgr. Lefebvre e o Vaticano - 1988-2001. Niterói: Editora Permanência, 2001, pp. 46-51.
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