Lembro-me do prazer há tantos anos encontrado na leitura de Conan Doyle, mas sondando a memória eu verifico que não me ficaram as sagacidades do policial. O que me ficou foi Baker Street. Foi qualquer coisa que começaria assim: "Numa tarde chuvosa de novembro, Holmes e eu...". E o resto me aparece ligado à seiva de vida dos meus dez anos: a sala obscura, o Dr. Watson mexendo na lareira, e Holmes, de pernas estendidas, sonhador, acompanhando as ilógicas volutas do cachimbo. Lá fora, neva. De repente, depois de um sinal de campainha, a porta se abre e assoma no limiar um desconhecido de meia-idade e cabelos cor de fogo!... Do mais eu não me lembro, mas basta-me essa porta que se abre e esse desconhecido de cabelos cor de fogo, para que eu encontre um pouco da força perdida de minha distante meninice. Chesterton assinalou que o maravilhoso é tanto mais simples quanto menos a idade. Aos quatro anos, por exemplo, bastaria ouvir "a porta se abriu"... para sentir a presença do maravilhoso, mesmo sem o estranho personagem ruivo.
Os contos policiais de Poe e de seus discípulos, eram rigorosamente arquitetados sobre a lógica do crime por sua vez desvendado pela lógica dos motivos. Dupin e Sherlock deduziam passos de homem como um geômetra deduz propriedades de triângulos. E por isso eu tenho a certeza de que falhariam lamentavelmente se fossem arrancados do papel e postos diante do mais banal assassinato.
A superioridade do Padre Brown não consiste, a bem dizer, na falta de lógica. Ele raciocina como qualquer pessoa medianamente sagaz, mas a força de seu gênio está num outro conhecimento: ele conhece o mal. Conhece-o como um mistério, e como uma herança. Antes de perseguir ladrões e assassinos cá fora, já os perseguira nas almas dos penitentes, e na sua própria, Tinha a experiência da santidade, que é a única experiência frutuosa do mal; e tanto deslindava o crime como levava, às vezes, o criminoso a se arrepender e a pedir-lhe a absolvição dos pecados, o que aliás produzia nos outros personagens os mais vivos acessos de incredulidade. Aceitavam a sagacidade do padre, mas não podiam crer no arrependimento do ladrão, para o qual, efetivamente, não existe explicação cabal.
A força do Padre Brown está no bom-senso e no olhar poético e místico com que vê o mundo. Está até numa certa dose de distração e sonolência com que se alivia do penoso trabalho de catar pontas de cigarro e impressões digitais. Diante dos dados concretos, candidamente apreendidos, interpretados muitas vezes ao pé da letra, ele se encontra em simpatia com o criminoso, e inventa poeticamente, ou recorda misticamente, como praticaria ele o crime.
O leitor que ainda não conheça as façanhas do Padre Brown estará nesse momento, eu receio, pensando que são novelas carregadas de tese e ostentadoras de uma ideia fixa. Mas não é isso. A constância de uma ideia não forma uma tese nem merece o nome de ideia fixa. Há certas constâncias que são essenciais a qualquer novela, e uma ideia verdadeira é justamente o que melhor se dissolve, deixando de ser uma ideia. Por mais variadas que sejam as situações dos personagens são necessárias certas constâncias, sem as quais não haveria novela. Deve haver por exemplo, entre os mais diversos personagens, uma profunda semelhança no modo de andar, falar e assoar o nariz. Se tentarmos introduzir uma nota original e inteiramente nova nessas atitudes os personagens deixarão de ser isso que entendemos por homem, mulher e criança.
O que eu queri dizer, é que a ideia que Chesterton tem do mistério do homem é análoga à ideia que ele tem do nariz e das pernas do homem. Por isso suas novela não cheiram à tese mas guardam a profunda constância pela qual se descobre a semelhança entre o padre e o ladrão. São cúmplices. Há entre eles uma comunhão.. pertencem à mesma quadrilha, e moram ambos na ampla e feérica caverna onde se partilham o lucro da rapinagem e o prêmio da santidade.
Gustavo Corção. Três Alqueires e Uma Vaca. Parte III: Para não ser doido... "O Crime".
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