ANTOINE DE MOTREFF
RENÉ GUÉNON JUGÉ
PAR LA TRADITION, ÉDITIONS DU SEL, 2008, AVRILLÉ.
TRADUÇÃO DE LUIZ DE CARVALHO
É inegável que René Guénon (1886-1951)
exerce uma influência importante nos ambientes intelectuais que reivindicam
para si, a torto ou a direto, a Tradição. Para justificar a afirmação, basta
citar o livro de Éric Vatré, La droite du père. Enquête sur la Tradition
catholique aujourd’hui[1]
[A direita do pai. Enquete sobre a Tradição Católica nos dias de hoje]: um
terço da obra se dedica aos discípulos de Guénon[2].
O problema da compatibilidade
entre as ideias de Guénon e o catolicismo já se discutia enquanto o escritor
ainda vivia. René Guénon, de origem católica, colaborou no início com revistas
monárquicas e católicas na França, quais La France anti-maçonnique (1913-1914)
ou a Revue universelle du Sacré-Coeur, Regnabit (1925-1927)[3].
As primeiras reações vieram dos colaboradores da Revue Internationale des
Societé Secrètes, de Mons. Jouin; a disputa terminou em 1930, quando Guénon se
“exilou” de própria vontade no Egito, onde se viu livre para praticar o
esoterismo muçulmano que abraçara secretamente em 1912.
Depois disso, começaram a aparecer
diversos estudos que tendem a demonstrar que o pensamento de Guénon é
incompatível com a doutrina católica. Assinalemos, entre os mais pertinentes,
os de Lucien Meroz[4],
Daniel Jacob[5] e
Jean Vaquié[6].
Esses estudos não impediram que a influência do pensamento de Guénon aumentasse
em alguns ambientes católicos.
Veja-se por exemplo a entrevista de
mais de 12 páginas do sociólogo Émile Poulat, que, em uma espécie de “suma” sobre
René Guénon[7],
mostra-se mui favorável a certos aspectos do guénonismo e faz estranhas correlações
entre o cardeal Pitra e o pensamento de Guénon.
Jean Hani, cujos livros sobre
simbolismo tiveram a honra da publicação em alguns ambientes mui próximos a Dom
Lefebvre, lamenta-se sobre a incompreensão dos ambientes católicos que não
aceitam, como ele aceita, o pensamento do mestre:
[...] Os ambientes que deveriam prestar mais atenção à mensagem de Guénon são justamente os que mais estão fechados a ela; quando passam a conhecê-la, transformam-se nos mais hostis: com isso queremos apontar os ambientes religiosos, sobretudo católicos. À medida que a obra de Guénon se populariza, começa a se expor às críticas cada vez mais violentas desses ambientes. E não só violentas mas, afirmemo-lo às claras, injustas e às vezes odiosas. De fato, com honráveis exceções – como a obra de Andruzac, que é um esforço sincero de aproximação e uma tentativa de compreensão das opiniões de Guénon a partir da teologia católica, ou a obra póstuma do Pe. Stéphane – o que se lê nessas críticas causa aflição e revolta; aflição, porque os autores parecem que nada entenderam da obra de Guénon, cometendo absurdos interpretativos contra o que ele escreveu; e revolta, porque esses censores estão animados por uma tendência fanática, manifestada em uma cólera mal disfarçada[8].
Até uma revista próxima a Dom
Lefebvre, como era Itinéraires em 1985, reproduzia, em um artigo de Yves
Donald, o julgamento mui favorável de Noële Maurice-Denis Boulet:
[...] Parece temerário, em duas páginas e meia, dar uma lição em Guénon e concluir que a sua doutrina se limita ao velho gnosticismo: “A deformação grega das ideias orientais mal compreendidas não me interessa nem um pouco”, dizia Guénon a Maritain. Guénon é um inimigo do gnosticismo, escrevia Noële Maurice-Denis Boulet. Não é possível chegar aqui ao fundo do problema. Quem quiser ter uma ideia do debate e em que nível se situa, consulte o estudo de Noële Maurice-Denis Boulet (doutora em teologia), publicado em 1962 na revista La pensée catholique. Nesse estudo se lê, por ex.: “A despeito de problemas de vocabulário, cuja unificação é impossível, a opinião de Guénon, em metafísica pura, está mais próxima da opinião tomista do que qualquer outra opinião professada por um pensador moderno, cristão ou não”.
No entanto, constata-se sem
dificuldades, ao consultar o supracitado artigo de La pensée catholique, que
Noële Maurice-Denis Boulet defende a memória do velho amigo – o querido René
Guénon, como ela o chama; assim, é imprudente estribar-se apenas na autoridade
dela. Citemos um excerto revelador do artigo:
Tenho diante de mim a narração, já legendária, da morte de Guénon, que um de seus amigos redigiu em 1951: “[...] A doença combatida se manifestou na garganta e um abscesso lhe provocou sufocamento... Na tarde precedente à morte... sentado no beliche, conseguiu realizar todas as orações e ritos do derradeiro dhikr. Por meio das escolas iniciáticas do islã, totalizara em si de algum modo a iniciação de há muito fragmentada (?). A prática do dhikr era sempre esgotante. Nas presentes condições, era imenso o esforço, de sorte que lhe escorria um suor abundante da testa e da barba branca. O suor emanava um perfume de rosas que durou até ao fim. A última palavra, antes de expirar, foi o nome de Alá.”
Querido René Guénon! O “iniciado”, e mais de uma vez “iniciado”, não o vemos “imóvel no centro da roda cósmica”, como um “liberto já em vida”, graças à “realização metafísica”, nem como um sufi que alcançasse em definitivo “a identidade suprema”. Antes, o que nele se vê é essa necessidade, para assegurar a passagem, do recurso ao derradeiro dhikr, como um humilde cristão que recorresse à comendatio animae, mostrando-nos a posteriori, até o último suspiro, a “sede” por esse Deus que ele recusara a identificar com o Amor. Parece-me que o metafísico hindu, iluminado e sutil, tem direito ao nosso respeito; já o mau cristão, até apóstata (desde a mocidade), à nossa piedade. Contudo, ele morreu foi como místico muçulmano, “místico” contra a vontade, sem dúvida, o que, somado à íntegra dignidade da sua vida, dá-lhe o direito ao nosso amor e nos desperta, em relação a ele, a fraternal esperança[9].
Como o livro de Lucien Méroz sumiu
das lojas, e o estudo de Daniel Jacob é antigo e difícil de encontrar, e os trabalhos
de Jean Vaquié sofreram por vezes uma injusta depreciação[10],
parece útil nos dedicarmos um pouco ao problema nesta revista.
Queremos evidenciar que existe
uma oposição, fundamental e radical, entre o guenonismo e o catolicismo, e que
tal oposição não é apenas de ideias mas de inspirações. Guénon não é só um
filósofo ou pensador de ideias heterodoxas, como afirmara com razão a maioria dos
contestadores católicos. O problema é muito mais grave e sério: na verdade, ele
é um autor espiritual que propõe uma espiritualidade pretensamente superior à
espiritualidade da Igreja Católica. Aos leitores expõe muito mais do que
considerações algo estranhas: sugere o recebimento da iniciação que lhes
outorgará uma influência espiritual capaz de impeli-los para muito além da mera
“salvação” cristã: a iniciação alçá-los-ia
até à “realização espiritual”, à identificação suprema com o absoluto
indiferenciado.
Desse modo, força é descobrir a
natureza da influência espiritual proposta por René Guénon. Existe, de fato? Se
existe, que espírito é esse?
[1] VATRÉ, Éric. La droite du père. Enquête
sur la Tradition catholique aujourd’hui, Guy Trédaniel, 1994, 372 p.
[2]
A influência de Guénon não se limita à Tradição Católica. Ele se transformou
numa espécie de doutor comum da maçonaria – ao menos, para os maçons que
procuram um itinerário espiritual. Demais, a sua influência ultrapassa os
limites da maçonaria e se estende a grande parte do movimento esotérico, que se
ramifica em múltiplas escolas.
[3]
Indicações bem pormenorizadas sobre as
relações de Guénon com os ambientes católicos estão no livro de Marie-France
James, Ésotérisme et cristianianisme autour de René Guénon [René Guénon segundo
o esoterismo e o cristianismo], Nouvelles Éditions Latines, 1981. O livro é interessante
por causa dos documentos, mas não é recomendável a todos, pois o autor, ao
estilo universitário, abstém-se do menor julgamento.
[4] MÉROZ,
Lucien. René Guénon ou la sagesse initiatique, Plon, 1962, 245 págs.
[5]
JACOB, Daniel. “René Guénon, une super-religion pour les initiés”, Permanences 34,
novembro de 1966, págs. 31-62.
[6]
VAQUIÉ, Jean, em diversos estudos publicados em Lecture et Tradition (BP –
86190 Chiré--em-Montreuil), por ex., nos nºs
76, 79, 82 e 167, e nos Cahiers de la Societé Augustin Barruel (62 rue
Sala – 69002 Lyon), por ex., no nº 25, o único atualmente disponível que contém
a lista dos estudos precedentes.
[7]
L’Herne René Guénon, periódico sob a direção de Jean-Pierre Laurant e Paul
Barbanegra, Éd. de l’Herne, 1985,
459 págs. O
periódico, ao responder
a um interlocutor
que se queixava
da violência dos ataques da RISS
(Revue Internationale des Societés Secrètes, revista católica dirigida pelo
Mons. Jouin, que no começo do séc. XX lutava contra as sociedades secretas) e
de certos ambientes católicos alinhados
com o Pe.
Barbier (por ex.,
a Societé Augustin Barruel) contra
a gnose, diz que os “integristas”
são hostis ao pensamento moderno e ao simbolismo; os coitados dos “integristas”
decididamente não entenderam nada.
[8]
L’Herne René Guénon, p. 273-274. O autor
chega ao ponto de se questionar se não haveria uma conspiração contra René
Guénon: “Ainda por cima, quando se analisam e – como dizem os eruditos – se
colacionam esses libelos, evidencia-se a convergência entre eles e, não raro, a
identidade de argumentação
dos autores, às
vezes com dezenas
de anos de
distância entre si, como
se constata na recente obra de Marie-France James, de sorte que é possível
perguntar se não existe, por trás de todas essas pessoas, uma inspiração única
que orquestra, de alguma forma, as suas lucubrações” (id). Ele propõe uma via
de reaproximação entre guenonismo e catolicismo, não pela doutrina mas pelo
estudo do simbolismo. Decerto, haveria alguma coisa a se fazer nessa área, não
para tentar reaproximar-se de Guénon, como propusera Jean Hani, mas para demonstrar
que existe um verdadeiro simbolismo católico, mui diferente do simbolismo
guenonista. Jean Vaquié vislumbrava tal estudo, quando a morte o surpreendeu;
esperamos retomá-lo algum dia.
[9]
BOULET, Noële Maurice-Denis, “L’ésoteriste René Guénon”, La pensée catholique
80, 1962, pág.80.
[10]
Vimos alguns conhecidos paladinos da Tradição Católica, na linha de Dom
Lefebvre, atacarem com violência os Cahiers de la Societé Augustin Barruel,
sobretudo Jean Vaquié. Além disso, Jean Vaquié conhecia pouco a teologia de
Santo Tomás, assim nos parece útil completá-lo neste quesito.
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